quinta-feira, 30 de agosto de 2007




















Nenhuma lógica

Nenhuma lógica explica coisa alguma. A vida é uma conjunção de insensatez e temeridade. Uma conjunção involuntária. A sermos generosos poderiamos dizer: semi-voluntária.

Nenhuma lógica explica coisa alguma muito menos alguns raciocínios lineares. Os matemáticos, talvez? Talvez nem isso. Talvez o amor justifique a vida. Viver como ato pleno, quero dizer. Aquele momento raro e pontual em que fomos o melhor de nós mesmos e o fomos para o outro e por nós.

Mas tudo isso são pensamentos esparsos.

Não sejamos ridículos, não dramatizemos, não demos maior valor às coisas do que o que elas têm, poderias dizer-me.

Nada tem valor algum a não ser o que lhe atribuímos. De modo que podes ser cínico, ou descrente, ou sarcástico. O amor não deixará de existir por causa disto. O amor não deixará de existir porque o julgas de pouco valor. Nem o teu amor por mim deixará de existir. O que deixa de existir é a tua possibilidade de vivê-lo integralmente. Eu o vivi. Digo-o sem temores.

Ontem à noite sonhei que visitava uma casa muito branca e quase vazia, projetada contra o céu azul. Algumas árvores sussurravam ao vento ao longo da estrada que ia dar na casa. Outras se distribuíam em torno dela. Dentro, uma estante de muitos livros, uma lareira pequena, a mesa tosca com duas cadeiras e a um canto uma cadeira de balanço. Nela sentava-se um homem muito só, muito triste, mergulhado em remorsos. Pareceu-me estranhamente familiar, a casa, a cena. Sonhei um sonho que não me pertencia, pertencia-te

O que isso tem a ver com a minha digressão sobre o amor? O amor em si mesmo, eu responderia.




Silvia Chueire

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Bilhete

Rio de Janeiro, 07 de fevereiro de 2006.


Caro José Roberto,



Você deve estar estranhando o tratamento formal. Não estranhe, é proposital. Sabendo do seu rigor com as palavras quis dar um tom formal a este bilhete.
Pois isto não é uma carta, muito menos literária, é um bilhete, uma comunicação, uma qualquer coisa. Uma saída, provavelmente. Sim, isso, uma saída. Ainda que esta categoria não exista.
Mas, como você me disse tantas vezes, eu não sou literata, nem literária e nem entendo nada do assunto. Portanto não é carta, nem literatura, estamos acertados.
Vão em anexo três fotografias que eu pediria você só olhasse no momento certo. O momento certo, eu aviso ao longo do bilhete.
Você que gosta de jogos e entende da emoção da manipulação do outro, compreenderá, sei bem. Assim, calma, paciência. Chegaremos lá.

Escrevo-lhe para lhe dizer que cansei.
Cansei de tudo, absolutamente tudo. Não me sobrou nada que não me cansasse. Cansei-me da sua indiferença. Este estado de espírito que se tornou a sua personalidade há anos com a desculpa rasa de ser sua identificação com os europeus, de ser seu lado contido, a máscara que ocultava sua intensa vida interior. Talvez a máscara lhe tenha colado à face, ou, como tenho certeza, sua vida interior seja puro fingimento. O fato é que a cara de tédio, o comportamento impassível em relação às coisas e a mim, não importando o que ocorresse de bom, de agradável, cansou-me.

Para ser muito franca, cansei-me também de mim mesma. Da minha dor com tudo isto, que tentava ocultar de você e de todos, dor que está cravada no meu peito, em cortes fundos. Cansei-me da sensação de ser pequena. Tão pequena e insignificante, feia, desprezível. Do meu olhar pedinte para você, eu me cansei. Era o olhar que pedia a sua atenção, um seu gesto de carinho, uma palavra de afeto, a manifestação de algum interesse. Sabe, José? O amor, mesmo a amizade, transmite-se com os olhos, alimenta-se com os olhos. Cansei-me do seu olhar que me atravessava, frio, quando estávamos em presença de outras pessoas no simulacro que me amava porque você se preocupa tanto com o que pensam os outros. Fingia que me olhava, que me admirava, que me desejava.

Cansei-me de estar bonita e bem vestida só para que você me exibisse aos olhos alheios. De ler o que você gostava, para agradá-lo e o que eu gosto às escondidas, para não ouvir sua crítica em relação às minhas escolhas. Porque a literatura brasileira é pobre, com duas ou três exceções, e Clarice é um expoente desta pobreza e os clássicos é que importavam, você dizia. Dostoievski que me perdoe, cheguei quase a odiá-lo. Cansei-me da minha submissão.

Cansei-me de ter o corpo cobiçado por tantos homens quando você inventava todas as desculpas para não fazermos amor. Ou melhor, para não treparmos. Ou quando o fazíamos, esta coisa rara, ficar sempre com a sensação de ter uma aparência desagradável, porque nunca mais beijos na boca, nunca mais as preliminares. O amor antes do amor, lembra-se? Houve algum dia. Nada da sua boca no meu sexo, lambendo-o com tesão, na minha pele. Nem das mãos agarradas à minha bunda, ou da minha boca a bebê-lo, porque você me impedia.
Sua ereção insuficiente era culpa, clara, de algum gesto meu, dos seios estarem menos firmes do que eram há cinco anos, de eu não ter mais trinta anos.

Cansei de me masturbar. De fingir o orgasmo para proteger o seu amor próprio. Como se aquela coisinha mal ereta, em cinco minutos de movimentos repetidos pudesse dar-me prazer. Seu ronco, minutos depois, eu não suportava mais.
Às vezes penso que você se masturbava usando o meu corpo.Cinco anos, José, é muito tempo. Fingi durante cinco anos. E você se enganou durante o mesmo tempo, porque lhe interessava que fosse assim.Ou porque tinha um desinteresse absoluto de me dar prazer. Ao menos é o que penso, já que não pode ser possível um homem ser tão cego que não perceba a insatisfação da mulher com quem dorme, com quem faz aquilo que você chama sexo. Impossível, estamos casados há seis anos. Ignora quem quer.

Agora aconselharia que você olhasse as fotografias. Sei, pela sua natureza egoísta, que você deve estar lendo este bilhete com ar de enfado. Nada que não fosse assunto seu, exclusivamente seu, o mobilizaria. Mas valho-me da sua curiosidade sobre onde isso vai parar.
São três fotografias tiradas no último mês. Como você verá, em cada uma sou eu a fazer sexo com um homem diferente. Em posições diferentes. Belos homens, com tesão por mim. E eu tive desejo por eles, intensamente. Um deles como você pode ver é o seu amigo Alberto, os outros apaguei os rostos. Envio estas fotografias com a autorização deles. É um imbecil, disse-me Alberto. E se a trata assim, merece mesmo ver isto. Sexo anal, adorei, José. E eles gostaram da minha bunda. Chuparam-me de di ca da men te. Eu fiz o mesmo, com prazer. Por horas. Ah, eu devia ter feito isto antes. Mas eu amava você, esta é a verdade. Pois bem, me cansei.

Ser uma mulher para exibição pública e não ser ninguém na intimidade, no cotidiano, José, tem efeito devastador. Nem um animal vive sem amor. Algum tipo de amor que seja. Algum carinho, consideração. Se não, porque estarmos juntos? Tantas vezes perguntei, tantas você disse que eu estava dramatizando, que era uma chatice.
Ser ninguém para alguém é insuportável. Ser uma coisa, um enfeite na casa. É indizível a sensação que isto provoca numa pessoa. Cansei-me de ser uma não-pessoa, de viver esta tortura. A indiferença é uma tortura. O egoísmo exacerbado faz sofrer o outro, faz parte desta tortura sistemática, deste despersonalizar o outro. Cansei-me de sofrer.

O amor acaba, José. E eu estou recuperando a minha dignidade, meu respeito por mim mesma, meu espaço no mundo.

Espero que você seja infeliz vivendo consigo mesmo. Mas como o conheço, não alimento esperanças. Não creio que você reconheça nada disto, ainda que conte, no fundo, com alguma fagulha de lucidez.

Adeus,

Paula

PS: Por uma questão de eficácia, para que você sinta na pele, enviei cópia deste bilhete, com as devidas fotografias, para seus amigos mais próximos, para a sua família e para o seu chefe.


Silvia Chueire