sábado, 22 de setembro de 2007

Maria Lúcia

Maria Lúcia saltou do táxi e entrou no cinema. Recém remodelado, o Odeón recobrara algo da sua antiga nobreza, deixando de ser a sala decadente que fora nas últimas décadas, lugar preferencial de filmes pornográficos e seus admiradores.

Ajeitou a saia e sentou-se buscando a concentração para assistir o filme. Esforçava-se para manter contida a excitação que tomara conta dela. A taquicardia a ameaçar-lhe a garganta. A adrenalina à solta. Fazia-se necessário domar as substâncias e seus efeitos, pelo bem de certa discrição. Maria Lúcia era toda uma confusão de pensamentos e sensações. Descobria-se outra.
O gosto da vitória, da coragem, da desforra, na boca. O conhecimento do seu poder. A ausência de culpa. O sorriso. O sorriso e a taquicardia. Era uma espécie de prazer, aquilo. Como gozar sem fazer o ruído, às escondidas, pensava.
Contida aquela estranha alegria, aquela vertigem, olhava para a tela na qual um casal de atores discutia, em francês, alguma coisa. Olhava e não acreditava no que fora capaz de fazer.

Matar um homem. O seu homem. Nelson estendido na cama em meio ao sangue. O seu amor, depois o seu ódio, agora sua vingança. Ninguém desconfiaria de uma professora de subúrbio, ninguém sabia do “caso” que eles tiveram. Ele a levava sempre a hotéis baratos. Nunca a apresentara aos amigos.

Todas as noites ardendo de paixão por aquele homem. Tudo que ouvira, as frases de desejo evoluindo para a para a maldade, o desejo assumindo lugar de degradação. Os olhares de desprezo a lhe cortarem por dentro. Depois a crueldade franca estendida nas palavras, o sexo furioso, sem sinal de afeto, a absoluta ausência de ternura. Submetia-se. Sabia que precisava afastar-se dele, mas se submetia. No início o amor a impediu. Como poderia viver sem aquele homem? Mais tarde era um sentimento desconhecido, mistura de amor, ódio e uma sensação de falta de ar quando pensava em separar-se dele. Parecia uma doença a roer-lhe. Por que ainda não rompera? O que era isso? Então gostava de se sentir degradada, de ser maltratada? Dependente, como uma drogada, pensava. Mas tudo continuava acontecendo desde que o conhecera e ele a confundira com uma prostituta apesar das evidências em contrário. E ela deixara acontecer, no início com a emoção de uma adolescente vivendo uma aventura, depois já não sabia porquê.

Agora as coisas mudavam e se sentia forte. Há pouco mais de uma hora saíra daquele hotel, deixando lá Nelson, baleado. O respeito por si mesma retornava. O respeito que só adquirira na vida depois de tomar coragem para sair da casa dos pais. Do pai que abusava dela e da mãe conivente. Nojentos! Agora se sentia inteira. Conhecia a outra que era capaz de ser e gostava dela. Aquela que ouvira o ruído seco de um corpo caindo ao chão sem que aquilo lhe causasse nenhum remorso. A mesma que planejara tudo em detalhes, estremecendo de antecipação. A mulher de quem ninguém suspeitaria, provando a si e a eles quem era. Com o vigor da adrenalina a percorrer-lhe de cima a baixo. Sentia-se bem. Muito bem.

O filme acabou. Antes de sair Maria Lúcia foi ao banheiro, retocou o baton, desabotoou os dois primeiros botões de sua blusa, deixou o blazer também aberto para que a blusa e o decote aparecessem, soltou os cabelos que sabia bonitos, sacudiu-os com a mão e saiu do cinema, os saltos altos pisando firmes o calçamento da praça. Homens a olhavam.

Caminhou com um sorriso divertido nos lábios e entrou num bar um quarteirão mais à frente, o mesmo bar no qual conhecera Nelson. Tão diferente ela estava agora! Não lhe importava a mínima se aquele era um bar freqüentado por prostitutas. Sentou-se num banco alto junto ao balcão, pediu uma caipirinha de limão e olhou em volta. Minutos depois, um sujeito moreno se aproximou dela.

- Olá! Está sozinha?

- Estou sim.

- Posso me sentar aqui?

- Claro! Respondeu, sorrindo.

- Qual o seu preço?

- Ah... Isso? Não se preocupe.

- Como é o seu nome, linda?

- Marta. Disse-lhe com voz velada e olhar sedutor.


Silvia Chueire

terça-feira, 4 de setembro de 2007

lance bressow- nude in red chalk















Marta

A mulher nua sentada sobre um banco de veludo vermelho. Voltada para uma penteadeira antiga escova cuidadosamente os cabelos longos e ondulados. O corpo que se reflete no espelho é quase perfeito à luz imprecisa que invade o quarto. Dedica-se aos cabelos como se deles tudo dependesse.
Um quarto de hotel na Lapa. Hotel de quinta categoria.

O céu ainda vagamente iluminado pelo sol . O céu está la fora, sempre lá fora. O céu nunca é onde estamos, nunca dentro de nós, ela pensa. O que tenho dentro de mim é uma tempestade, vento forte, muita chuva.

O homem deitado a observa, sem brilho no olhar e olha em torno. Os lençóis da cama amarfanhados. O vestido no chão. Segundos depois, com ar de enfado ele pega o jornal que trouxera consigo e principia a lê-lo. Lê o jornal por algum tempo, e pára, a página de esportes acabou. Olha o quarto, onde pisca a luz esverdeada do salão de bilhar em frente, e a mulher a pentear os cabelos .

Crescem nele as perguntas. O que faz ali pela enésima vez nestes ultimos 5 anos, com uma prostituta, quando em casa o espera a família, na casa limpa e bem iluminada, na Tijuca? Sempre a mesma mulher, sempre a sordidez dos mesmos lugares. A vida gastando-se no que agora lhe pareciam horas de vício. Tinha uma lembrança vaga de como tudo começara e a certeza de que era passada a hora de terminar com aquilo. Cortar radicalmente o mal. Dobrar a vida.

Ela se lembrava de tudo nos mínimos detalhes.Era professora primária e estava toda arrumada naquela tarde, pois pela primeira vez decidira-se a ir ao cinema sozinha. Escolhera um filme exibido num cinema no centro da cidade, na Cinelândia. Depois atrevera-se a entrar num bar próximo, que não conhecia, para tomar um suco. A atitude, radical, para uma moça vinda de uma cidade do interior para o Rio de Janeiro , a cidade grande, a fazia sentir-se vitoriosa e segura .
No bar ele a abordou com muita delicadeza, e gentil conversou com ela sobre muitos assuntos que lhe pareceram agradáveis, não falaram sobre as vidas pessoais. Ela não teve vontade de lhe perguntar sobre isto e ele também não fez perguntas. Lembrava-se do encanto a invadir-lhe a cada palavra que ele lhe dizia, do olhar que a seduzia, da oferta para levá-la até sua casa em Irajá e por fim do beijo após lhe confessar que era casado.
Não posso ter compromissos, ele dissera. Sou casado. Mas a beijara na porta de casa. Ela consentira, era só pele, coração e pernas bambas.
Você estava naquele bar, ele disse então, suavemente. É um bar conhecido pela frequência. Sendo uma profissional talvez possamos continuar a nos encontrar algumas vezes, eu lhe pago e fica tudo acertado. Sendo eu casado parece mais correto assim, sem envolvimentos. Depois de uns segundos tentando entender o que ele queria dizer com a palavra “profissional” ela estremecera ao perceber. Mas se conteve ao ver aqueles olhos castanhos a lhe pedirem que assim fosse para poderem continuar juntos, e seu coração a gritar ainda mais e aquela fome de aventura. Disse-lhe que sim, anuindo com a cabeça os olhos pregados na cerâmica bege do piso da entrada do portão.
Durante 5 anos se encontraram em hotéis baratos, ultimamente naquele mesmo hotel. Ela pedira. Nostalgia, talvez? Talvez sim, talvez não. Tudo fora sempre determinado por ele, hora, lugar. Tudo. Ela recusara é claro, o pagamento. Não, não, eu amo você, é por amor. Ele rira. Nunca tinha visto uma coisa dessas, dissera. Desde então ela esperava que ele percebesse a diferença que havia entre ela e uma prostituta. Todos estes anos esperando que ele enfim a reconhecesse. Nos modos, na conversa, na pouca experiência sexual que tinha. Na inocência.

Escova o cabelo lentamente sabendo que ele gostava de a ver assim, calma e bela sentada à sua frente. Espera que enfim ele lhe diga : querida, desculpe-me por tudo, eu amo você. Espera uma esperança débil e teme. Teme o que nem se atreve a pensar, mas pensara. Se pensara! Os anos mudam uma pessoa, tornam-na realista. Já não tinha ilusões. Olhava aquele homem que tinha sido a sua paixão todos estes anos e via o desinteresse dele gravado em cada gesto.

Ele se decidiu:
- Marta, é o fim! Acabamos por aqui! Não posso nem quero mais vir. Não quero continuar a andar com uma puta, mesmo que seja em segredo. Logo eu, um gerente de banco... O que diriam minha família e amigos? Uma puta, um escândalo! E depois nem tem mais graça , nem tesão. Nem sei como aguentei todos estes anos! Seu tom era de desprezo.

Ela vestiu seu tailleur cinza, as meias 7/8 fumée, os sapatos pretos de saltos altos e finos, e levantou-se sem dizer palavra. Contendo, sempre contendo, o susto que tivera e a tensão que aumentava, a raiva.

Ele reconheceu, desagradavel :
- Para uma puta você é de uma elegância impressionante.

Ela recolheu os cabelos num laço azul royal, ainda calada.
- Não vai dizer nada? perguntou admirado.

- Vou sim, Nelson, ouça bem! Chamo-me Maria Lúcia Gomes! Disse isto a você no primeiro dia, mas você cismou de me chamar de Marta e eu não quis contrariá-lo. Sou professora . Jamais fui prostituta! Sempre me admirei por você não querer perceber isto. Sempre esperei que acontecesse. E que esta coisa, à qual me submeti por amar você, se transformasse numa relação normal. Mas não foi assim. Eu queria apenas que você dissesse algo que o redimisse da sua insensibilidade, do seu egoísmo. Infelizmente não aconteceu. E agora estas coisas ditas assim por você, são como tapas. Quem não aguenta mais sou eu! Chega, está ouvindo? Chega!

Ele ironizou :
- Ah, vai dizer também que esperava que eu me separasse para casar com você? Era só o que faltava. Uma puta, ora essa! Professora coisa nenhuma... Puta, isso sim. Ria-se dela.

- Chega, Nelson! Eu já disse que chega! É a última vez! Disse ela, a voz e o corpo trêmulos de indignação.

Ele ria e ria.

Maria Lúcia tirou da bolsa uma pequena pistola e disparou três tiros à queima-roupa que o barulho e música alta do quarto ao lado disfarçaram. Guardou-as na bolsa, pistola e escova. Limpou com um lenço muito branco as possibilidades de ter deixado impressões digitais no quarto. Pegou os livros que trouxera, colocou os óculos escuros e saiu não sem antes olhar para o corpo do homem que amara, as feições de surpresa paralisadas no rosto dele, sangrando sobre a cama.
Não lhe importava mais. Só o que ela queria era o pedido de desculpas dele por ter-se enganado confundindo-a, induzindo-a a se fingir prostituta, à degradação que levou junto o amor que sentia.

Não se esqueceu de avisar na portaria do hotel:
- Ouvi uns barulhos estranhos vindos de algum quarto, pareciam tiros. Acho melhor irem verificar, disse sem sequer tremor na voz.

O rapaz do balcão ao ver aquela senhora, conhecida de vista, elegante e educada, respondeu com presteza:
-Sim, senhora, agora mesmo vou lá ver.

Há meses Maria Lúcia vinha alugando e frequentando um outro quarto no mesmo hotel, num andar mais acima, dizia que precisava solidão para escrever sua tese.

Deixou o lugar aliviada, um sorriso brando no rosto, e chamou um táxi.
- Por favor, leve-me para o Cinema Odeon, ali na Cinelândia.


Silvia Chueire