terça-feira, 16 de outubro de 2007

O tempo

Sei que o tempo é um truque que inventamos porque o sol se levanta e se põe . É um truque que inventamos para medir o nosso desespero, a nossa alegria, a distância que nos separa do que queremos , a deterioração inevitável do corpo.

Tu reinventas o tempo para poderes me esperar e voar para mim. Sei que me esperas e queres que te espere. E o faço.

Assim, os dias, as horas, são eu a pensar em ti. E as palavras apenas uma escusa para falar-te, para tocar-te, para abreviar os minutos e a minha necessidade de ti.
O sol a bater-me no rosto pela manhã, as palavras trocadas com as pessoas no caminho, a canção ouvida, de passagem, na rua, o sorriso a um amigo. Todos são o amor a esperar por ti. O meu amor depositado na espera.
A minha vida sou eu a amar-te.


Silvia Chueire

sábado, 6 de outubro de 2007

Manhã de domingo

A manhã nublada do domingo e suas ruas quietas. A casa descansa um descanso que não é meu. Azaléas caladas na varanda, um latido ao longe, a obra na rua parada ao meio. Tudo parece ainda no resto de sono matinal.

Olho detalhadamente as coisas - casa, rua, jardim, árvores, varanda, montanhas ao longe, cão perambulando - à procura do reconforto da visão pacífica de tudo. Sorrio da minha própria ingenuidade. Pacíficas as coisas, inquieta a pessoa. Não me movo, distendendo o entendimento da inevitabilidade dos fatos. Ainda assim sem paz. Ainda assim pergunto sempre.

Queria jazer ali, feito coisa, apenas um objeto impensante a mais na natureza passageira de tudo.
Ou feito gato que vai passando em passos lentos; esguio, todo atenção. Essa atenção esquiva, própria, enigmática, que não pergunta, mas tem propósitos.

Jazer, nem um pensamento a atormentar-me com os porquês.
Reunir-me à buganvília, toda silêncio e espinhos, a usufruir o sol.
E nem uma palavra.

Silvia Chueire

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Afogado

Tinha os olhos afogados no medo como se neles só restassem dúvidas.
E quase, sempre quase, fazia o gesto que o redimiria. Iludiam-no uns segundos de coragem.
Eram incertas as coisas, pensava. Uma vida insensata, cheia de perguntas sem respostas. Cheia de precipícios e arestas imprevisíveis.

Nunca a reconheceu quando ela surgiu na sua vida. Apesar de todos os sinais. Do rio de palavras naturalmente partilhadas. Dos olhos de ambos a sorrirem. Do estremecer da pele quando a via. Do desejo a caminhar-lhe os membros. Da ocultíssima ereção até, que o ameaçava ao olhar para o seu decote.
Não a reconheceu. Nem com a lava de ternura a invadir-lhe o peito, o impulso de se deitar nas coxas dela, ou de enredar-se naquele perfume que parecia conhecer desde sempre. Nem com a vontade de saber seu sexo e a impressão de que já sabia.
Não a reconheceu ainda assim. Nem com os acontecimentos a despertarem-lhe todos os sentidos e todas as palavras. Cada momento a abrir uma fissura na pedra que carregava em si. Ele a falar de si, da sua história, nunca antes comentada sequer com outra pessoa, no gozo da liberdade, esta liberdade rara na qual podia ser quem era. Os olhos dela seguindo atentamente seu relato. A compreensão.
Nada foi suficiente para movê-lo de onde estava. Era um homem descrente. Não acreditava na verdade mesmo que a tivesse nas veias. Um homem vencido pelas incertezas. Dias depois, como sempre fizera, pediu que se fosse. Argumentou com o olhar sem brilho e a voz abafada. Insistiu.

Quando ela dobrou a esquina, pensou que talvez estivesse chorando. Que talvez seu corpo doesse agudamente, que talvez aquela sensação de morte fosse ilusão romântica. Contemplou longamente a mulher que desaparecia, sentindo-se esvair, cair com a chuva miúda na rua. Mas não esboçou gesto ou som. Olhou com aqueles olhos afogados a paisagem em torno.
Nenhuma nitidez .


Silvia Chueire