Choveu ontem, os carros passavam rápidos, água espanando as pessoas que esperavam no ponto de ônibus. Mais tarde, ao olhar a noite no deserto da rua, vi tua face refletida nas poças junto à calçada.
Não há mistério no meu rosto ao espreitar o céu, acabado de lavar, negro, as estrelas largadas no aleatório.
Não há mistério no meu rosto, não há mistério no teu.
Há uma multidão e nem uma pessoa. São faces passageiras, perdidas. Até que alguma toque a solidão da outra.
Desvendei teu segredo. Soube das tuas mãos presas no calabouço do medo. O corpo rendido à própria fraqueza, acuado pelos cães da angústia. O amor a desafiar tua vida segura pela própria fragilidade, literária.
Desvendei teu segredo, o outro lado, a outra face, o outro homem, a montanha de contradições, o delírio noturno e assombrado. O pranto oculto. O fantasma a perambular, ora hesitante ora agudo pelo labirinto das salas vazias, das mãos femininas, das casas alheias. As palavras a ocultarem tua verdadeira face.
Desvendei teu segredo e secaria tuas lágrimas, fosse isso possível. Eu o faria suavemente, sem mãos, sem palavras, apenas um olhar, próximo, continente.
Desvendei teu segredo e não podes ver-me porque estás cego e eu ardo nos dias e noites. E porque ardo não podes me ver, estás cego e frio.
Ainda ontem tive a justa impressão de que tropeçamos um no outro. Tive a impressão de quase poder tocar-te, mas tocar-te só será possível se não estiveres cego e não ensudecermos nesta distância atlântica.
Saberias que tenho um corpo e palavras e silêncios e um amor liberto. Talvez desvendasses os meus segredos. Talvez.
Silvia Chueire