sábado, 30 de junho de 2007

veermer - the little street- detail
Desvendei teu segredo

Choveu ontem, os carros passavam rápidos, água espanando as pessoas que esperavam no ponto de ônibus. Mais tarde, ao olhar a noite no deserto da rua, vi tua face refletida nas poças junto à calçada.
Não há mistério no meu rosto ao espreitar o céu, acabado de lavar, negro, as estrelas largadas no aleatório.
Não há mistério no meu rosto, não há mistério no teu.

Há uma multidão e nem uma pessoa. São faces passageiras, perdidas. Até que alguma toque a solidão da outra.

Desvendei teu segredo. Soube das tuas mãos presas no calabouço do medo. O corpo rendido à própria fraqueza, acuado pelos cães da angústia. O amor a desafiar tua vida segura pela própria fragilidade, literária.

Desvendei teu segredo, o outro lado, a outra face, o outro homem, a montanha de contradições, o delírio noturno e assombrado. O pranto oculto. O fantasma a perambular, ora hesitante ora agudo pelo labirinto das salas vazias, das mãos femininas, das casas alheias. As palavras a ocultarem tua verdadeira face.

Desvendei teu segredo e secaria tuas lágrimas, fosse isso possível. Eu o faria suavemente, sem mãos, sem palavras, apenas um olhar, próximo, continente.

Desvendei teu segredo e não podes ver-me porque estás cego e eu ardo nos dias e noites. E porque ardo não podes me ver, estás cego e frio.

Ainda ontem tive a justa impressão de que tropeçamos um no outro. Tive a impressão de quase poder tocar-te, mas tocar-te só será possível se não estiveres cego e não ensudecermos nesta distância atlântica.
Saberias que tenho um corpo e palavras e silêncios e um amor liberto. Talvez desvendasses os meus segredos. Talvez.


Silvia Chueire

terça-feira, 26 de junho de 2007

A espera

schiele - sitting woman

Havia apenas o mar nos olhos, uma vaga aflição e a espera amorosamente tecida nas canções, quando a lâmina tirou-lhe a voz da garganta e o oceano do peito.
De só golpe decepou-lhe a realidade e o sonho.

Todas as justificativas para a dor são injustificadas quando o amor é óbvio e olha com olhos de esperança.
Recapitulados os dias perfeitos, impecáveis, indescrití­veis dias de fascínio, nada mudou. como se um furacão de acontecimentos não a tivesse surpreendido.

"Entre as quatro paredes do meu peito, só eu sei. Só eu sei o que espero e o que desespero": foi a única pista rara vez sussurrada a alguém.

No mais, permanece sentada à mesma janela de sempre. Diz coisas incompreensíveis vez em quando. Lê um livro, ouve música, olha em torno como se acordasse do sono, entoa alguma canção qualquer, vai e volta, sorri, e diz às pessoas coisas prováveis.
Mas permanece lá, nas noites inquietas, a conversar com ele que já não está .A espera, o desespero, raramente visíveis.

Na sala, no quarto , no corpo, em todo lado os sinais da vida desfeita, que só ela sabe.


Silvia Chueire

sexta-feira, 22 de junho de 2007

De medo

arthur james - everything that you do


Era um dia de medo sob as nuvens, um dia de música ignorada, o medo nascendo feito jato d'água, do peito espalhando-se pelo corpo, a tremer tantos terremotos, como se a terra fosse revirar-se, a náusea a subir e descer.
Era um dia de medo e nestes dias é que renunciamos viver. Assim foi.

Ela o observava sem calar completamente, nunca fora capaz do silêncio de pedra. Observava, cada vértebra estremecida, a pedir internamente: não, assim não. Cada pensamento voltado para o acontecimento: a vida estancada, parada à margem árida do que estava ali, do que estava por vir.
Mas nossas mãos nunca podem remover o medo alheio, por mais que prometam o paraíso. Cada um procura o inferno que bem entende.

Eram dias de tenebroso terror para os quais ela olhava sem acreditar que poderiam ser. Dias de inundações, de ondas desgovernadas, de vozes ásperas chocando-se contra as paredes, contra a sua face incrédula.
Também ela, por minutos, temeu. Temeu o esquecimento de que eram felizes. Tão mais felizes do que podem ser as pessoas no nosso tempo. Sabia que a felicidade tem tanto peso quanto a morte, ambas não se deve esquecer.

Eram dias com o terror colado. Desaguaram em milhares de palavras, numa corrente líquida de palavras desesperadas, de pensamentos a procurar um nexo, qualquer nexo. Mas qualquer nexo corria à solta das coisas, chorava-se a lágrima pura da dor.

Era ela entre as paredes, a tecer as razões de tudo. Era ele acuado. Era ela, Penélope caricatural, a repetir perguntas e respostas, tentando entender a turbulência. Campos e campos de dor. Era ele a fugir.

Não se toma o medo alheio nas mãos e se o desfaz com gestos amorosos. O medo alheio é uma intrincada floresta de dúvidas que não nos pertencem, de renúncias que não são nossas. Nunca renunciou, nunca cedeu ao medo. Mas a nossa coragem não é a coragem do outro.

Era uma casa tristemente quieta de maio. A sua casa. Tapou o seu rosto com a máscara do sorriso, calou sua voz entre as notas de uma qualquer música, e foi vivendo os pedaços da mulher que era, até que os recompusesse um dia. Até que pudesse renascer.

Hoje pensa: um dia a felicidade há de ser uma coisa natural.








Silvia Chueire