quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

magritte-human condition


Outono



Olhei para o céu e para o chão, e de novo para o céu,
Era outono. Havia folhas no chão e um céu limpo, quando me disseste naquela manhã repentina, depois de estares na minha casa há muitos dias e na minha cama por um número igual de dias:

- Não é possível ficar, por tua causa não consigo pintar.

Olhei para a folhas secas a teimar com elas, como se me tivessem dito um absurdo direto da sua secura.
Sou uma mulher, e mulheres não devem derramar lágrimas em vão, principalmente no ambiente em que vivemos. E teimei forte. Calada. Não tinha palavras.

-Por que não voltas? Por que não vais? Por que não ficas? Nasciam da minha garganta atropelando-se, contra a minha vontade. Contive-os.

Suponho que uma boa solução era ter dois amantes. um para o verão, nadaríamos juntos, outro para o inverno quando fizesse muito frio, que me aquecesse. Ou talvez quatro, um para cada estação. Porque neste caso, é certo que não me dirias nada e eu não teimaria com as folhas.
Preciso encontrar uma solução razoável para este teu tipo de statement.
uma indiferença digna, de ascendência real, sem angústias. Mais ou menos assim:

- Olha, hoje mudo de amante e pintarás à vontade.

Mas calei.

Engraçado pensei, olhando o céu, outro homem na primavera, escreve seus livros sem problemas e além disso toca um esplêndido violino enquanto me dispo.
Mas era outono. O céu estava muito azul. Era outono e descuidei-me. O outono da cidade nítida, dos pássaros, não te pertencia. Era só meu.
E repetiste:

- Desculpa-me mas é verdade, por tua causa não consigo produzir nada.

As mentiras têm formas engraçadas, fazem-me lembrar aqueles brinquedos de criança. Tubos com espelhos no fundo e cacos de vidro coloridos que conforme giramos mudam as imagens espelhadas e nos encantam. Não pintas por razões que nada têm a ver comigo, quis dizer. Mas nada disse. Não pintas mesmo que eu cuide de tudo para que estejas bem. Não pintas agora porque não consegues te ultrapassar a ti mesmo, Não tens outro sentimento a não ser teu amor por ti . E ele te impede de amar os outros e de pintar. Não amas e te vais. É esta a tua história. É assim que são as coisas, mas não queres saber. E eu me calo.

O da primavera quando é inverno me aconchega em mantas de lã, sob as quais dormimos nus e fazemos amor. Canta-me canções e eu lhe digo poemas. Como fui me descuidar assim? Trocar estações, enganar-me deste modo?

E finalmente eu disse:

- Já entendi. Tu não pintas e a causa disto sou eu, mesmo que poucas vezes façamos amor, ou conversemos, porque precisas pensar nos teus quadros. Mesmo que tenhas todas as horas vagas sem ser incomodado que precisarias. Acho que tens razão, era mesmo hora de ires.

Tive uma enorme saudade da primavera, e depois das mantas de lã –que chegarão a seu tempo- dos violinos e dos olhos cravados em mim. Das canções e da língua que me conhece tanto.
E uma noção absurdamente clara da estupidez de não ter compreendido antes o que te impedia de pintar.

E abri a porta.
- Adeus.

Silvia Chueire

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

No meio do mundo



Estava de pé no meio do mundo. No meio da cidade. No meio da casa. No meio da vida. Hirto, sem dizer palavra, estava de pé no meio da balbúrdia do universo.
Tinha 27 anos e estava ali, de pé, os olhos azuis, fixos, atravessando as paredes, voltados para o rumor que escutava, um rumor, um murmúrio de vozes, uma delas elevada sobre todas as outras.
Estava de pé há muitas horas no meio do mundo. Os cabelos louros chegando aos ombros, o tronco nu, as pernas inchadas do tempo que permanecia parado no meio da sala.
À sua volta andavam a mãe, a irmã, o pai, atarantados, a falar com ele palavras que ele ignorava, que se misturavam, insignificantes, ao rumor que ouvia, por trás da outra voz, nítida . Eram palavras de absoluta incompreensão sobre ele, sobre o que estava acontecendo, sobre o seu destino, o seu dever, sua importância nos acontecimentos .

A família chamava-o para fora disto, para coisas pequenas da vida mínima de todos os dias, que não interessavam. Queriam-no para eles. E insistiam, insistiam. Ele não prestava atenção. A vida não era nada daquilo. Era maior que eles. Que ele, que a cidade, que o café da manhã, o jantar, ou ir ao banheiro. Maior do que a sua idade, as diversões, ou o prazer. A vida era grande e podia ser aguda. Um mar e uma gota para um afogamento. Uma faca, um passo além da borda da janela até o corpo se estatelar no chão. Os tiros e os micro intervalos entre os tiros de uma metralhadora, o cravar das balas na carne. Eles não sabiam de nada.

A vida, ele sabia, ali de pé, era um emaranhado de coisas e homens, pensamentos e inutilidades, desorganização e pessoas perdidas, cidades perdidas, nações perdidas. O tempo a pressionar o pensamento dos homens. As mortes, a miséria, as guerras. Isto era a vida! Não as palavras dos livros, ou as especulações dos filósofos. A vida era o sangue correndo sem parar e o mundo, a terra, a desfazer-se. O vontade de todos que o mundo se recuperasse e ninguém fazendo nada. A esperança vazia, porque os homens sempre esperam e a vida os morde cada vez com maior fome, com maior crueldade.
E ele ali, sua responsabilidade olhando-o, à espera de que ele cumprisse a sua parte. Os pensamentos partidos feito trens com suas linhas ferroviárias a se entrecruzarem, umas interrompidas, outras se superpondo. Os pensamentos feito uma geometria doida.
Difícil pensar. A emoção machucava o peito.
Doiam-lhe as costas, os músculos. As pernas e pés, já não se lembrava de senti-los. Tivera sede e a ignorara. A cabeça, sentia-a zonza. Fazia certo calor e a luz fora mantida acesa, anoitecia, percebeu. Ele transpirava.

As pessoas em torno faziam-lhe perguntas que já não respondia há horas. Se estava com fome, se não queria sentar-se, descansar.
Por favor, meu filho, dormir, comer, tomar um banho morno, por favor, meu filho.
Trivialidades. Tivera fome e sono e cansaço nas primeiras horas. Agora vagava, mas não vacilava um segundo sequer. Dali não podia afastar-se.
Sustentava o mundo, que dependia dele, com a tenacidade de quem evita a desgraça.

Súbito pressentiu a entrada na sala de alguém que lá não estava antes. Talvez porque seus pais se afastaram, talvez porque uma campainha tocara. Minutos depois, não soube, nem se interessou em precisar quantos, aproximou-se dele uma mulher, de rosto sério, porém pacífico. Pareceu-lhe ouvir a mãe dizer : esta é a doutora que veio lhe ajudar. Não teve sobressaltos, sabia qual o seu destino, sua tarefa. Uma doutora nada tinha a ver com tudo aquilo. A Voz, o rumor e a Voz, obedecia . O mundo era pesado.

Compreendera como seriam importantes as coisas, ao sair do banheiro dias antes e deparar-se com a visão de um cavalo alado saindo do vaso sanitário. O cavalo belíssimo crescendo à sua frente, as asas se abrindo brancas, lindas. Espetacular. Os pelos do corpo arrepiados, arregalara os olhos o que é isso, meu Deus ? Adrenalina, coração rápido, medo e espanto. Em seguida deu-se conta de que aquilo tinha um significado e na paulatina tentativa de entender, foi se acalmando. Aquela não era uma visão má. Pegasus o cavalo dos deuses? E percebeu o privilégio de ser o homem que podia ver, que sabia o que os outros não sabiam.
Antes de tudo isto sabia que algo estava para acontecer, tinha a sensação de expectativa, ainda que não soubesse o que esperava, tinha atenção. Tantas coisas parecendo estranhas...
Depois as coisas foram evoluindo, os vizinhos a falarem dele. Sempre a falarem mal dele, ele ouvia, cochichos. Ignorantes, invejosos da sua sabedoria... A angústia de saber que as pessoas não entendiam do que ele falava, quando o fazia. E ele às vezes tentava, cada vez menos.

Precisava se manter firme apesar da dor intensa, das pernas que sentia quentes. Bebera um gole de água por insistência da mãe, mas não se movera do meio da sala. Como poderia mover-se do centro do mundo?

A mulher aproximou-se muito calma, chamou-o pelo nome:
- João ? ele imóvel, os olhos semi-cerrados.
- João, preciso conversar com você, ela disse.
- Diga, por que você está no meio do quarto há tantas horas parado? Converse comigo, diga o que há.
- ...
Quem era aquela mulher? E pensou, nada me removerá daqui.
- Que tal nos sentarmos mais confortáveis ? Você está aí há quase 24 horas, sua mãe me disse. Isso é exaustivo. Eu também estou cansada, era melhor conversarmos sentados. Que tal? E deu um leve sorriso.
- ...
- Você precisa ao menos beber água, comer alguma coisa, ir ao banheiro.

O tom calmo da voz, o rosto dela sem aflição, pareciam amigos. Lembrou-se da vontade de urinar que o havia atormentado no início, da sede. Tudo agora era só dor, a agonia pela qual tinha que passar, estar ali de pé, o mundo sobre a sua cabeça, as milhares de vozes do mundo. Não percebiam. Eram incapazes de entender que ele não podia sair dali, que se pudesse correria para o banheiro, ou para o sofá. Mas a sua consciência da importância das coisas e a Voz, que se sobrepunha a todas as outras, o mantinham firme.

Seus pais haviam silenciado, confiando à mulher o diálogo. O rumor longínquo de vozes persistia, falavam dele. Manteve a cabeça ereta, o olhar voltara para a parede. Através da parede olhava para tudo, no seu pensamento, a vida, homens a matarem-se, a morrerem de fome, os gritos de socorro. E tinha certeza absoluta do que devia fazer. Ouvira claramente tantas vezes: depende de você. As notícias na televisão a falarem dele, da fé que tinham nele. Os vizinhos olhando-o, ora desconfiados, ora maldosos, fora ele o escolhido. A confusão das ruas esperando que ele cumprisse seu papel .

- João ? ouviu novamente. Está bem, conversamos aqui mesmo. Diga-me, porque é que você está nesta posição há mais de 24 horas? O que há? Eu não entendo e gostaria de entender.

Nem ela entendia nada! Eles não tinham a menor idéia do que se passava. Pobres de espírito.
Sentiu-se irritado por entre o sofrimento todo, certa exultação por ter sido escolhido, e os pensamentos partindo-se, as vozes. Farei o que deve ser feito.
Gente imbecil !
Olhou para ela, para aqueles mansos olhos castanhos, pronto a dizer um palavrão. Mas sentiu-a solidária. Refreou a raiva e enfim, numa última tentativa, rompeu o silêncio, dizendo em tom alto :
- Será que você não vê que não posso !? Estou de pé no centro do mundo! O equilíbrio das coisas depende de mim, só de mim. Deus me incumbiu de manter o equilíbrio da vida na terra, da vida dos homens, tem me repetido isto há dias. Só há horas percebi claramente que era a voz Dele e que tudo depende apenas de mim ! Se eu me mover daqui tudo vem abaixo, o mundo se desfaz ! Não posso me mover. Não posso. A televisão disse, os vizinhos estão... Cala a boca! Voltou o rosto para o lado de onde ouvira um risinho de deboche. Meus pais não sabem de nada, nem você, pelo jeito.
A dor atravessando-lhe a coluna, a garganta seca, o abdome contraído. Os olhos de novo na parede.

Ela baixou o olhar. Baixou-o na percepção agudíssima do sofrimento daquele homem. Manter o equilíbrio do mundo, a tarefa gigantesca. Durante algum tempo ainda tentou conversar com ele. Precisava convencê-lo a conversar, trazê-lo para perto. Esperava que alguma luz se fizesse dentro dele, mas a que ele via era outra...
Depois ofereceu-lhe água e uns comprimidos. Tinha que tentar, embora soubesse ser mais que mínima a probabilidade de que ele os aceitasse. Nada. Ele não queria comprimidos, água, nada. Não respondeu mais, imóvel.

Saiu dali com a clareza do que estava acontecendo e dirigiu-se aos pais.
- Creio que será preciso interná-lo, ele está sem tomar medicação há muito tempo e a situação tem-se agravado. Se esperarmos mais, tudo se complica do ponto de vista físico também. Chamarei a ambulância, está bem? E deu um telefonema.
Os pais, a irmã, sem saberem o que dizer. Explicou :
- A recusa de tratamento piora tudo, e não creio que ele vá sair dali a não ser num desmaio de exaustão.
Seus motivos são demasiado importantes, ela pensou pesarosa, o mundo depende dele. Voltou à sala.
- João, ficarei aqui com você algum tempo, mesmo que você não queira falar. Estou aqui se você precisar de mim.

Ele se manteve calado. Uma companhia sem exigências, ao menos isso.



Silvia Chueire

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Deus é pai


Ia pela calçada da praia revendo a beleza e o mar que lhe acalmavam e sempre lhe traziam uma alegria interna.

O salto fino do sapato ficou preso na calçada de pedras portuguesas. O corpo inclinou-se para frente, preso o pé, e antes do tombo provável ela se apoiou no primeiro braço que ia passando. Surpreso, ainda assim ele a sustentou.
Passado o susto, o constrangimento ainda no ar, pedidos de desculpas. Os de praxe, sem muito exagero. Por uma fração de minuto teve a nítida impressão de que ele se divertia com o seu constrangimento. Como se eu andasse por aí a me agarrar ao braço do primeiro que passa , pensou. Meu Deus, ele é bonito! Pior, vai pensar que é isso.

- Ainda precisa ajuda? Tem certeza que não se machucou? Seu tom era cuidadoso.
Ela pensando, tomara tivesse algum machucadinho, ele me levaria no colo?

- Não, obrigada, respondeu com um sorriso leve, os olhos a olhá-lo de baixo para cima, pois se inclinara um pouco como a conferir o bem-estar do tornozelo.
E olhou-o certa de que o sorriso e o olhar azul eram suas melhores armas. É agora ou nunca! E pôs-se ereta. Ele era um tanto mais alto ainda. Os olhos castanhos claros também sorriam. Parado olhando-a.

-Está bem, então. Até outra vez.
O sorriso nos olhos dele, não sabia se ele brincava ou hesitava.
Nada mais a dizer, estava bem, não caíra e ele queria ir embora. Não podia abordá-lo, que tal tomar um café comigo? . Não tinha jeito para isto. Iria embora também, se possível antes dele. Sorriu um sorriso sem graça, ajeitou a bolsa no ombro, passou a mão na saia, como que a limpar algum cisco e deu o primeiro passo. Seu corpo abruptamente desequilibrou-se, os joelhos cederam. Só viu os braços dele se estendendo.

– Deus é pai! – estava quebrado o salto


Silvia Chueire