quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

No meio do mundo



Estava de pé no meio do mundo. No meio da cidade. No meio da casa. No meio da vida. Hirto, sem dizer palavra, estava de pé no meio da balbúrdia do universo.
Tinha 27 anos e estava ali, de pé, os olhos azuis, fixos, atravessando as paredes, voltados para o rumor que escutava, um rumor, um murmúrio de vozes, uma delas elevada sobre todas as outras.
Estava de pé há muitas horas no meio do mundo. Os cabelos louros chegando aos ombros, o tronco nu, as pernas inchadas do tempo que permanecia parado no meio da sala.
À sua volta andavam a mãe, a irmã, o pai, atarantados, a falar com ele palavras que ele ignorava, que se misturavam, insignificantes, ao rumor que ouvia, por trás da outra voz, nítida . Eram palavras de absoluta incompreensão sobre ele, sobre o que estava acontecendo, sobre o seu destino, o seu dever, sua importância nos acontecimentos .

A família chamava-o para fora disto, para coisas pequenas da vida mínima de todos os dias, que não interessavam. Queriam-no para eles. E insistiam, insistiam. Ele não prestava atenção. A vida não era nada daquilo. Era maior que eles. Que ele, que a cidade, que o café da manhã, o jantar, ou ir ao banheiro. Maior do que a sua idade, as diversões, ou o prazer. A vida era grande e podia ser aguda. Um mar e uma gota para um afogamento. Uma faca, um passo além da borda da janela até o corpo se estatelar no chão. Os tiros e os micro intervalos entre os tiros de uma metralhadora, o cravar das balas na carne. Eles não sabiam de nada.

A vida, ele sabia, ali de pé, era um emaranhado de coisas e homens, pensamentos e inutilidades, desorganização e pessoas perdidas, cidades perdidas, nações perdidas. O tempo a pressionar o pensamento dos homens. As mortes, a miséria, as guerras. Isto era a vida! Não as palavras dos livros, ou as especulações dos filósofos. A vida era o sangue correndo sem parar e o mundo, a terra, a desfazer-se. O vontade de todos que o mundo se recuperasse e ninguém fazendo nada. A esperança vazia, porque os homens sempre esperam e a vida os morde cada vez com maior fome, com maior crueldade.
E ele ali, sua responsabilidade olhando-o, à espera de que ele cumprisse a sua parte. Os pensamentos partidos feito trens com suas linhas ferroviárias a se entrecruzarem, umas interrompidas, outras se superpondo. Os pensamentos feito uma geometria doida.
Difícil pensar. A emoção machucava o peito.
Doiam-lhe as costas, os músculos. As pernas e pés, já não se lembrava de senti-los. Tivera sede e a ignorara. A cabeça, sentia-a zonza. Fazia certo calor e a luz fora mantida acesa, anoitecia, percebeu. Ele transpirava.

As pessoas em torno faziam-lhe perguntas que já não respondia há horas. Se estava com fome, se não queria sentar-se, descansar.
Por favor, meu filho, dormir, comer, tomar um banho morno, por favor, meu filho.
Trivialidades. Tivera fome e sono e cansaço nas primeiras horas. Agora vagava, mas não vacilava um segundo sequer. Dali não podia afastar-se.
Sustentava o mundo, que dependia dele, com a tenacidade de quem evita a desgraça.

Súbito pressentiu a entrada na sala de alguém que lá não estava antes. Talvez porque seus pais se afastaram, talvez porque uma campainha tocara. Minutos depois, não soube, nem se interessou em precisar quantos, aproximou-se dele uma mulher, de rosto sério, porém pacífico. Pareceu-lhe ouvir a mãe dizer : esta é a doutora que veio lhe ajudar. Não teve sobressaltos, sabia qual o seu destino, sua tarefa. Uma doutora nada tinha a ver com tudo aquilo. A Voz, o rumor e a Voz, obedecia . O mundo era pesado.

Compreendera como seriam importantes as coisas, ao sair do banheiro dias antes e deparar-se com a visão de um cavalo alado saindo do vaso sanitário. O cavalo belíssimo crescendo à sua frente, as asas se abrindo brancas, lindas. Espetacular. Os pelos do corpo arrepiados, arregalara os olhos o que é isso, meu Deus ? Adrenalina, coração rápido, medo e espanto. Em seguida deu-se conta de que aquilo tinha um significado e na paulatina tentativa de entender, foi se acalmando. Aquela não era uma visão má. Pegasus o cavalo dos deuses? E percebeu o privilégio de ser o homem que podia ver, que sabia o que os outros não sabiam.
Antes de tudo isto sabia que algo estava para acontecer, tinha a sensação de expectativa, ainda que não soubesse o que esperava, tinha atenção. Tantas coisas parecendo estranhas...
Depois as coisas foram evoluindo, os vizinhos a falarem dele. Sempre a falarem mal dele, ele ouvia, cochichos. Ignorantes, invejosos da sua sabedoria... A angústia de saber que as pessoas não entendiam do que ele falava, quando o fazia. E ele às vezes tentava, cada vez menos.

Precisava se manter firme apesar da dor intensa, das pernas que sentia quentes. Bebera um gole de água por insistência da mãe, mas não se movera do meio da sala. Como poderia mover-se do centro do mundo?

A mulher aproximou-se muito calma, chamou-o pelo nome:
- João ? ele imóvel, os olhos semi-cerrados.
- João, preciso conversar com você, ela disse.
- Diga, por que você está no meio do quarto há tantas horas parado? Converse comigo, diga o que há.
- ...
Quem era aquela mulher? E pensou, nada me removerá daqui.
- Que tal nos sentarmos mais confortáveis ? Você está aí há quase 24 horas, sua mãe me disse. Isso é exaustivo. Eu também estou cansada, era melhor conversarmos sentados. Que tal? E deu um leve sorriso.
- ...
- Você precisa ao menos beber água, comer alguma coisa, ir ao banheiro.

O tom calmo da voz, o rosto dela sem aflição, pareciam amigos. Lembrou-se da vontade de urinar que o havia atormentado no início, da sede. Tudo agora era só dor, a agonia pela qual tinha que passar, estar ali de pé, o mundo sobre a sua cabeça, as milhares de vozes do mundo. Não percebiam. Eram incapazes de entender que ele não podia sair dali, que se pudesse correria para o banheiro, ou para o sofá. Mas a sua consciência da importância das coisas e a Voz, que se sobrepunha a todas as outras, o mantinham firme.

Seus pais haviam silenciado, confiando à mulher o diálogo. O rumor longínquo de vozes persistia, falavam dele. Manteve a cabeça ereta, o olhar voltara para a parede. Através da parede olhava para tudo, no seu pensamento, a vida, homens a matarem-se, a morrerem de fome, os gritos de socorro. E tinha certeza absoluta do que devia fazer. Ouvira claramente tantas vezes: depende de você. As notícias na televisão a falarem dele, da fé que tinham nele. Os vizinhos olhando-o, ora desconfiados, ora maldosos, fora ele o escolhido. A confusão das ruas esperando que ele cumprisse seu papel .

- João ? ouviu novamente. Está bem, conversamos aqui mesmo. Diga-me, porque é que você está nesta posição há mais de 24 horas? O que há? Eu não entendo e gostaria de entender.

Nem ela entendia nada! Eles não tinham a menor idéia do que se passava. Pobres de espírito.
Sentiu-se irritado por entre o sofrimento todo, certa exultação por ter sido escolhido, e os pensamentos partindo-se, as vozes. Farei o que deve ser feito.
Gente imbecil !
Olhou para ela, para aqueles mansos olhos castanhos, pronto a dizer um palavrão. Mas sentiu-a solidária. Refreou a raiva e enfim, numa última tentativa, rompeu o silêncio, dizendo em tom alto :
- Será que você não vê que não posso !? Estou de pé no centro do mundo! O equilíbrio das coisas depende de mim, só de mim. Deus me incumbiu de manter o equilíbrio da vida na terra, da vida dos homens, tem me repetido isto há dias. Só há horas percebi claramente que era a voz Dele e que tudo depende apenas de mim ! Se eu me mover daqui tudo vem abaixo, o mundo se desfaz ! Não posso me mover. Não posso. A televisão disse, os vizinhos estão... Cala a boca! Voltou o rosto para o lado de onde ouvira um risinho de deboche. Meus pais não sabem de nada, nem você, pelo jeito.
A dor atravessando-lhe a coluna, a garganta seca, o abdome contraído. Os olhos de novo na parede.

Ela baixou o olhar. Baixou-o na percepção agudíssima do sofrimento daquele homem. Manter o equilíbrio do mundo, a tarefa gigantesca. Durante algum tempo ainda tentou conversar com ele. Precisava convencê-lo a conversar, trazê-lo para perto. Esperava que alguma luz se fizesse dentro dele, mas a que ele via era outra...
Depois ofereceu-lhe água e uns comprimidos. Tinha que tentar, embora soubesse ser mais que mínima a probabilidade de que ele os aceitasse. Nada. Ele não queria comprimidos, água, nada. Não respondeu mais, imóvel.

Saiu dali com a clareza do que estava acontecendo e dirigiu-se aos pais.
- Creio que será preciso interná-lo, ele está sem tomar medicação há muito tempo e a situação tem-se agravado. Se esperarmos mais, tudo se complica do ponto de vista físico também. Chamarei a ambulância, está bem? E deu um telefonema.
Os pais, a irmã, sem saberem o que dizer. Explicou :
- A recusa de tratamento piora tudo, e não creio que ele vá sair dali a não ser num desmaio de exaustão.
Seus motivos são demasiado importantes, ela pensou pesarosa, o mundo depende dele. Voltou à sala.
- João, ficarei aqui com você algum tempo, mesmo que você não queira falar. Estou aqui se você precisar de mim.

Ele se manteve calado. Uma companhia sem exigências, ao menos isso.



Silvia Chueire

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