Maria Lúcia saltou do táxi e entrou no cinema. Recém remodelado, o Odeón recobrara algo da sua antiga nobreza, deixando de ser a sala decadente que fora nas últimas décadas, lugar preferencial de filmes pornográficos e seus admiradores.
Ajeitou a saia e sentou-se buscando a concentração para assistir o filme. Esforçava-se para manter contida a excitação que tomara conta dela. A taquicardia a ameaçar-lhe a garganta. A adrenalina à solta. Fazia-se necessário domar as substâncias e seus efeitos, pelo bem de certa discrição. Maria Lúcia era toda uma confusão de pensamentos e sensações. Descobria-se outra.
O gosto da vitória, da coragem, da desforra, na boca. O conhecimento do seu poder. A ausência de culpa. O sorriso. O sorriso e a taquicardia. Era uma espécie de prazer, aquilo. Como gozar sem fazer o ruído, às escondidas, pensava.
Contida aquela estranha alegria, aquela vertigem, olhava para a tela na qual um casal de atores discutia, em francês, alguma coisa. Olhava e não acreditava no que fora capaz de fazer.
Matar um homem. O seu homem. Nelson estendido na cama em meio ao sangue. O seu amor, depois o seu ódio, agora sua vingança. Ninguém desconfiaria de uma professora de subúrbio, ninguém sabia do “caso” que eles tiveram. Ele a levava sempre a hotéis baratos. Nunca a apresentara aos amigos.
Todas as noites ardendo de paixão por aquele homem. Tudo que ouvira, as frases de desejo evoluindo para a para a maldade, o desejo assumindo lugar de degradação. Os olhares de desprezo a lhe cortarem por dentro. Depois a crueldade franca estendida nas palavras, o sexo furioso, sem sinal de afeto, a absoluta ausência de ternura. Submetia-se. Sabia que precisava afastar-se dele, mas se submetia. No início o amor a impediu. Como poderia viver sem aquele homem? Mais tarde era um sentimento desconhecido, mistura de amor, ódio e uma sensação de falta de ar quando pensava em separar-se dele. Parecia uma doença a roer-lhe. Por que ainda não rompera? O que era isso? Então gostava de se sentir degradada, de ser maltratada? Dependente, como uma drogada, pensava. Mas tudo continuava acontecendo desde que o conhecera e ele a confundira com uma prostituta apesar das evidências em contrário. E ela deixara acontecer, no início com a emoção de uma adolescente vivendo uma aventura, depois já não sabia porquê.
Agora as coisas mudavam e se sentia forte. Há pouco mais de uma hora saíra daquele hotel, deixando lá Nelson, baleado. O respeito por si mesma retornava. O respeito que só adquirira na vida depois de tomar coragem para sair da casa dos pais. Do pai que abusava dela e da mãe conivente. Nojentos! Agora se sentia inteira. Conhecia a outra que era capaz de ser e gostava dela. Aquela que ouvira o ruído seco de um corpo caindo ao chão sem que aquilo lhe causasse nenhum remorso. A mesma que planejara tudo em detalhes, estremecendo de antecipação. A mulher de quem ninguém suspeitaria, provando a si e a eles quem era. Com o vigor da adrenalina a percorrer-lhe de cima a baixo. Sentia-se bem. Muito bem.
O filme acabou. Antes de sair Maria Lúcia foi ao banheiro, retocou o baton, desabotoou os dois primeiros botões de sua blusa, deixou o blazer também aberto para que a blusa e o decote aparecessem, soltou os cabelos que sabia bonitos, sacudiu-os com a mão e saiu do cinema, os saltos altos pisando firmes o calçamento da praça. Homens a olhavam.
Caminhou com um sorriso divertido nos lábios e entrou num bar um quarteirão mais à frente, o mesmo bar no qual conhecera Nelson. Tão diferente ela estava agora! Não lhe importava a mínima se aquele era um bar freqüentado por prostitutas. Sentou-se num banco alto junto ao balcão, pediu uma caipirinha de limão e olhou em volta. Minutos depois, um sujeito moreno se aproximou dela.
- Olá! Está sozinha?
- Estou sim.
- Posso me sentar aqui?
- Claro! Respondeu, sorrindo.
- Qual o seu preço?
- Ah... Isso? Não se preocupe.
- Como é o seu nome, linda?
- Marta. Disse-lhe com voz velada e olhar sedutor.
Silvia Chueire
sábado, 22 de setembro de 2007
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Um comentário:
É muito boa a história. Eu ampliaria ainda mais os pensamentos de ML, gostei dela dentro do cinema, justificando-se, convencida.
Marta... Quando me ligam de um telemarketing digo que meu nome é Milton... Ribas.
Ah, refiro-me a ti hoje no blog, muito en passant.
beijo.
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