quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Morte e sobre-morte




Morte

Os pensamentos atravancando a garganta, a cabeça, o peito, o corpo todo. Devia ser permitido ao ser humano dizer seus pensamentos na desordem em que deságuam em que se enfurecem e crescem mais que nós. Talvez aliviasse a angústia. Talvez.
Mas não, tudo era uma confusão misturada ao esforço extremo para dar conta de algo sobre o qual se sabe apenas que ameaça, amedronta, tem braços que nos apertam o tórax e nos calam a voz. Fingimos e falamos calmamente: está tudo bem.

Menos de vinte e quatro horas decorridas da primeira ida ao médico com a mãe, já sabia: era grave. A imagem do exame era clara, um cérebro infestado, nódulos - de quê?
Gostaria de recusar todo o conhecimento que tinha. Todos os pensamentos que se articulavam rapidamente em imagens, sintomas, probabilidades. O despenhadeiro das probabilidades.


Difícil era conseguir conter o conhecimento, o susto, a vontade de chorar, para exibir um sorriso franco, firme: está tudo bem, a não ser por uma coisinha à toa. Mentirosa!Disse a si mesma, a culpa misturada à pena, das duas. A impotência misturada à dor. A dor aguda de perceber claramente o risco, a vida a tirá-la dela.

Atravessar a cidade como se nada houvesse acontecido, conversando banalidades e pequenas observações: amanhã falamos com o seu médico para começar a investigar isto, talvez seja uma micro calcificação antiga, destas da idade, dizia . Sabia que era esperada dela uma opinião, era a filha mais velha e médica. E respondia às perguntas hesitantes com o jeito calmo de quem não temia. Minimizava riscos, inventava hipóteses. A mãe corria risco de vida e elas conversavam bobagens. O tempo escorrendo pela janela do automóvel. O tempo de redobrado valor. Tudo tão urgente e pararam na padaria a pedido da mãe. Queria poder chorar e agarrar-se a ela como fazia quando criança. Mãe, não vá! Egoísta, pensou, sou uma egoísta.

Depois, a tortura dos irmãos a lhe perguntarem todos os dias a mesma coisa, todos os dias se com certeza o diagnóstico era fatal. A tortura de ter que lhes responder centenas de vezes que sim. Que sim. Que sim! Pelo amor de deus, parem de me fazer esta pergunta, ela fere, a resposta fere! Quis gritar.

Depois, o desenrolar de dias de medo, confirmações, esperanças ruídas, a mãe perplexa, sem fazer perguntas. O desfilar de situações tão conhecidas, o corpo da mãe escapando ao controle, o espanto delas com tudo isso, a sensibilíssima pele de emoções na qual a mãe se transformou. A vida despedindo-se.
Por último a semana de hospitalização, a rápida corrida da morte contra a vida. A morte eficaz. A impotência assumindo ares de rainha.
O silêncio da morte. O abraço apertado da morte. O último abraço. A dor. A dor.



Sobre-morte


Abriram o caixão. A mãe ainda jazia lá. A mãe era aquela espécie de corpo. A mulher era aquele corpo descarnado. A morte tem palavras estranhas para nos falar da vida. Deu dois passos atrás, ainda que se os não víssemos. Mentalmente deu dois passos atrás.

Teve algum dia a ilusão científica ou mitológica, não sabia bem, de que aquele corpo não seria mais a mãe, seria pó, ou algum esqueleto sem personalidade, nenhuma história dizendo coisa alguma pelas cavidades orbitárias, apenas denominações anatômicas.

O que fazer quando os olhos se despregam da nossa cara e colam-se a um corpo deteriorado na incredulidade de que aquele seja o fim, aquela afronta?

Não que desconhecesse o fim. O fato é que a mãe, o corpo da mãe, os restos da mãe, vestiam o mesmo vestido e calçavam os mesmos sapatos. E ainda que se esforçasse por não reconhecê-la, ali estava ela.

O soco na boca do estômago das convicções e das convicções por trás das convicções, a sacudi-la. O soco na boca do estômago. Sua ilusão sacudida ante a natureza das coisas.
E por cima de tudo aquele corpo humilhado, exposto em plena ruína. A morte ignorando qualquer ética, qualquer estética. A morte a escapar ilesa do humano. A apontar a insignificância do corpo. O confronto brutal.

Séculos para recobrar-se de tudo. A mãe, a memória, as palavras e gestos da mãe, pairando sobre a dor, sobre aqueles dias. A falta pungente.
A vida compreendida como algo mais efêmero do que parecia. Mais importante e muito mais desimportante. A vida a ser vivida e morrida.



Silvia Chueire

sábado, 3 de novembro de 2007

















O dono da boca


Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito.
Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.

Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro!

Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho, a Helineide me olhando sem dizer nada.
Interrompi o que fazia :
- O que que é há Helineide ?
- É que estou com um probleminha e achei que a senhora que é tão lida e é arquiteta e tudo, talvez pudesse me ajudar.
- Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade.

Como é que vou dizer a ele ? Pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana, money, massari.

- Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que é que eu faço.
- Fala, Helineide. Diz. E parei com o plissê (depois pensaria no que dizer a ele).

- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas, jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem.
- Sim, e então?
- Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola.
- E agora? perguntei preocupada por ela.
- Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir.
Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.

Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada.
- Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada?
- Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe...
- O que, mulher !?
- Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo, tudo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação.
- Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca...
- Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, promessa e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?

Calei-me pensativa. Meu problema perto do dela era nada. Eu ainda posso apertar mais as finanças enquanto o meu amor não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.

- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.

Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.


Silvia Chueire