sábado, 3 de novembro de 2007

















O dono da boca


Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito.
Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.

Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro!

Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho, a Helineide me olhando sem dizer nada.
Interrompi o que fazia :
- O que que é há Helineide ?
- É que estou com um probleminha e achei que a senhora que é tão lida e é arquiteta e tudo, talvez pudesse me ajudar.
- Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade.

Como é que vou dizer a ele ? Pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana, money, massari.

- Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que é que eu faço.
- Fala, Helineide. Diz. E parei com o plissê (depois pensaria no que dizer a ele).

- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas, jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem.
- Sim, e então?
- Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola.
- E agora? perguntei preocupada por ela.
- Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir.
Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.

Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada.
- Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada?
- Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe...
- O que, mulher !?
- Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo, tudo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação.
- Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca...
- Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, promessa e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?

Calei-me pensativa. Meu problema perto do dela era nada. Eu ainda posso apertar mais as finanças enquanto o meu amor não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.

- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.

Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.


Silvia Chueire

Um comentário:

hfm disse...

Lido de um fôlego até ao fim.