Morte
Os pensamentos atravancando a garganta, a cabeça, o peito, o corpo todo. Devia ser permitido ao ser humano dizer seus pensamentos na desordem em que deságuam em que se enfurecem e crescem mais que nós. Talvez aliviasse a angústia. Talvez.
Mas não, tudo era uma confusão misturada ao esforço extremo para dar conta de algo sobre o qual se sabe apenas que ameaça, amedronta, tem braços que nos apertam o tórax e nos calam a voz. Fingimos e falamos calmamente: está tudo bem.
Menos de vinte e quatro horas decorridas da primeira ida ao médico com a mãe, já sabia: era grave. A imagem do exame era clara, um cérebro infestado, nódulos - de quê?
Gostaria de recusar todo o conhecimento que tinha. Todos os pensamentos que se articulavam rapidamente em imagens, sintomas, probabilidades. O despenhadeiro das probabilidades.
Difícil era conseguir conter o conhecimento, o susto, a vontade de chorar, para exibir um sorriso franco, firme: está tudo bem, a não ser por uma coisinha à toa. Mentirosa!Disse a si mesma, a culpa misturada à pena, das duas. A impotência misturada à dor. A dor aguda de perceber claramente o risco, a vida a tirá-la dela.
Atravessar a cidade como se nada houvesse acontecido, conversando banalidades e pequenas observações: amanhã falamos com o seu médico para começar a investigar isto, talvez seja uma micro calcificação antiga, destas da idade, dizia . Sabia que era esperada dela uma opinião, era a filha mais velha e médica. E respondia às perguntas hesitantes com o jeito calmo de quem não temia. Minimizava riscos, inventava hipóteses. A mãe corria risco de vida e elas conversavam bobagens. O tempo escorrendo pela janela do automóvel. O tempo de redobrado valor. Tudo tão urgente e pararam na padaria a pedido da mãe. Queria poder chorar e agarrar-se a ela como fazia quando criança. Mãe, não vá! Egoísta, pensou, sou uma egoísta.
Depois, a tortura dos irmãos a lhe perguntarem todos os dias a mesma coisa, todos os dias se com certeza o diagnóstico era fatal. A tortura de ter que lhes responder centenas de vezes que sim. Que sim. Que sim! Pelo amor de deus, parem de me fazer esta pergunta, ela fere, a resposta fere! Quis gritar.
Depois, o desenrolar de dias de medo, confirmações, esperanças ruídas, a mãe perplexa, sem fazer perguntas. O desfilar de situações tão conhecidas, o corpo da mãe escapando ao controle, o espanto delas com tudo isso, a sensibilíssima pele de emoções na qual a mãe se transformou. A vida despedindo-se.
Por último a semana de hospitalização, a rápida corrida da morte contra a vida. A morte eficaz. A impotência assumindo ares de rainha.
O silêncio da morte. O abraço apertado da morte. O último abraço. A dor. A dor.
Sobre-morte
Abriram o caixão. A mãe ainda jazia lá. A mãe era aquela espécie de corpo. A mulher era aquele corpo descarnado. A morte tem palavras estranhas para nos falar da vida. Deu dois passos atrás, ainda que se os não víssemos. Mentalmente deu dois passos atrás.
Teve algum dia a ilusão científica ou mitológica, não sabia bem, de que aquele corpo não seria mais a mãe, seria pó, ou algum esqueleto sem personalidade, nenhuma história dizendo coisa alguma pelas cavidades orbitárias, apenas denominações anatômicas.
O que fazer quando os olhos se despregam da nossa cara e colam-se a um corpo deteriorado na incredulidade de que aquele seja o fim, aquela afronta?
Não que desconhecesse o fim. O fato é que a mãe, o corpo da mãe, os restos da mãe, vestiam o mesmo vestido e calçavam os mesmos sapatos. E ainda que se esforçasse por não reconhecê-la, ali estava ela.
O soco na boca do estômago das convicções e das convicções por trás das convicções, a sacudi-la. O soco na boca do estômago. Sua ilusão sacudida ante a natureza das coisas.
E por cima de tudo aquele corpo humilhado, exposto em plena ruína. A morte ignorando qualquer ética, qualquer estética. A morte a escapar ilesa do humano. A apontar a insignificância do corpo. O confronto brutal.
Séculos para recobrar-se de tudo. A mãe, a memória, as palavras e gestos da mãe, pairando sobre a dor, sobre aqueles dias. A falta pungente.
A vida compreendida como algo mais efêmero do que parecia. Mais importante e muito mais desimportante. A vida a ser vivida e morrida.
Silvia Chueire
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