segunda-feira, 24 de março de 2008

Não posso mais fazer amor contigo - um paradoxo

Não vou mais fazer amor contigo, dissera-lhe decidido.
A necessidade de controle - de se saber dono de si mesmo, como se o desejo o desmantelasse. Como se em cada orgasmo, naquele momento em que se sentia fora de si, pudesse mesmo deixar de ser definitivamente. A ameaça de para além do prazer, abandonar-se ali. Logo ele, tão cioso de sua auto-suficiência.

Não mais fazer amor com ela, exatamente porque era tão bom fazê-lo. A obsessão que o perseguia. A obsessão por ela e a obsessão de não vir a ser subjugado por ela, pelo amor, de modo que sempre que ela quisesse o teria. A necessidade angustiada e compulsiva de se afastar. Tal qual um pecador se afasta do pecado, ou um jogador se afasta do jogo. Fugir da tentação do demônio. Ele, o ateu. Sabia, no seu íntimo, que ninguém, mulher ou homem, era seu dono, ninguém o possuía. Apesar disso, tinha aquele fantasma a assombrá-lo.

A descoberta da liberdade, ao fazer amor, fora fascinante. O amor no seu estado natural, livre. Era um homem experiente e nunca tinha vivido aquela plenitude. Tinha consciência de que a surpresa não era apenas sua. Vira o rosto dela iluminado. Percebera-lhe a perplexidade, o sorriso no olhar. Sentira-a nos gemidos, na umidade macia do sexo, ele na sua inteireza, a penetrá-la como se aquele tivesse sido sempre o seu lugar. Sabia da entrega daquele corpo, do absoluto que viviam. Estremecimento mútuo. Alegria mútua.

Nem uma vez se sentira só. Nem uma vez quisera não estar ali após o amor, ou sentira a sensação de tédio que o acometera tantas vezes com outras mulheres. Ao contrário, seus corpos encaixavam-se perfeitamente mesmo após fazerem amor. E as conversas eram carregadas de fascínio com as idéias de ambos, de ternura, de confiança, de um desguardar-se antes desconhecido.
No entanto, permanecia o medo. Retornava à sua cabeça a idéia, ridícula, pensava às vezes - de que pudesse ser controlado, dominado. Como se ela fosse uma bruxa que o tivesse enfeitiçado. Temores ancestrais a baterem à sua porta. Como se não soubesse que ela o queria, que também ela vivera tudo aquilo.

Não tinha palavras que traduzissem a importância do que sentira. Exatamente por isso estava determinado a não mais fazê-lo. Não queria sentir necessidade daquela mulher. E sua decisão não dependia de qualquer outro fato que não fosse sentir-se irremediavelmente atraído por ela. Sabia que quando ela o chamasse, iria. E ela, ele tinha a noção exata disso, amava-o e por isso o chamaria mais cedo ou mais tarde.
Viviam um despojamento de si próprios, o paradoxo de exercerem ao mesmo tempo suas individualidades e fundirem-se num só.

Decidira negar-se a fazer amor com ela, como se a sua natureza estivesse colocada num lugar exterior a si. Assombrado pela sensação de que seu desejo não lhe pertencia, mas a ela. Decidia como quem afirma : sou um Homem, ninguém é meu dono. Extinto o ato, extinguir-se-á o efeito, pensava. Decidia seu destino em meio àquelas sensações estranhas e à angústia. Para o poder fazer, culpava-a. Ela, a terrível.

Não percebia que ao desistir dela, abria mão do que de mais humano, mais completamente amoroso e pessoal, jamais vivera. Sua experiência mais íntima, a que nunca poderia ser vivida por outro. Não se dava conta de que faltaria daí em diante uma parte sua. Não apenas o corpo , o calor, os beijos, a presença, as conversas afinadas, mas seu próprio sentido. A possibilidade de sentir-se vivo e inteiro.

Ao afastar-se mergulhava no paradoxo de afirmar sua independência e negar sua natureza.
Por medo de se perder por ela, perdia-se de si mesmo.

Silvia Chueire

3 comentários:

Renato de Mattos Motta disse...

Obrigado.
Teu texto lembrou um amor que tive
antes de me perder de mim.

Anônimo disse...

O Renato disse tudo...

carmen.salgado@gmail.com disse...

perder-se de si mesmo...como dói!