segunda-feira, 28 de julho de 2008

"You’ve got to give a little"

Paula Rego- Flying children


Tudo foi um susto. Respirei uma vez. Uma vez apenas antes do beijo. Foi o suficiente para que me ardesse o corpo todo. Depois, foi o delírio. Dias e noites dos quais me lembro feito fossem minutos, segundos a desdobrarem-se em mais que tempo. Milhares de pequenos fragmentos de gestos, palavras, cenários. Uma incongruência de tempo e possibilidade.

O que chamamos vida entrecortada pelo poema, talvez isso. Algo entre o sonho, o desejo do sonho e a sensação de realização deles. Um relógio só aparentemente correto, um oceano de afeto, a disposição de dizer a verdade, a sensibilidade e o sexo. Foi o que bastou.
Suponho que o amor possa acontecer assim e não há realidade que o negue.

O corpo atravessado pela tua marca, a alma dançarina. A sensação da mais íntima de compreensão das coisas.
O sorriso fresco da felicidade. A felicidade tem um sorriso de um frescor ímpar e um olhar rejuvenescido.

O cd toca assim : "you've got to give a little, take a little and let your poor heart brake a little. That's the story of, that's the glory of love ". É uma linda canção. Os americanos acreditam nisso. Eu não. No amor há que haver dor, eles dizem. Não foi o que senti. Nenhum sofrimento naqueles dias. Nada negociado. A glória do amor nos habitava. Estávamos em pleno ar.

De mim o que sei é o vôo, o mergulho. Sem fronteiras. Até onde tiver que ir. Até o corte. Sem penitência. Sem medo.

Não sei mais de ti.


Silvia Chueire

segunda-feira, 24 de março de 2008

Não posso mais fazer amor contigo - um paradoxo

Não vou mais fazer amor contigo, dissera-lhe decidido.
A necessidade de controle - de se saber dono de si mesmo, como se o desejo o desmantelasse. Como se em cada orgasmo, naquele momento em que se sentia fora de si, pudesse mesmo deixar de ser definitivamente. A ameaça de para além do prazer, abandonar-se ali. Logo ele, tão cioso de sua auto-suficiência.

Não mais fazer amor com ela, exatamente porque era tão bom fazê-lo. A obsessão que o perseguia. A obsessão por ela e a obsessão de não vir a ser subjugado por ela, pelo amor, de modo que sempre que ela quisesse o teria. A necessidade angustiada e compulsiva de se afastar. Tal qual um pecador se afasta do pecado, ou um jogador se afasta do jogo. Fugir da tentação do demônio. Ele, o ateu. Sabia, no seu íntimo, que ninguém, mulher ou homem, era seu dono, ninguém o possuía. Apesar disso, tinha aquele fantasma a assombrá-lo.

A descoberta da liberdade, ao fazer amor, fora fascinante. O amor no seu estado natural, livre. Era um homem experiente e nunca tinha vivido aquela plenitude. Tinha consciência de que a surpresa não era apenas sua. Vira o rosto dela iluminado. Percebera-lhe a perplexidade, o sorriso no olhar. Sentira-a nos gemidos, na umidade macia do sexo, ele na sua inteireza, a penetrá-la como se aquele tivesse sido sempre o seu lugar. Sabia da entrega daquele corpo, do absoluto que viviam. Estremecimento mútuo. Alegria mútua.

Nem uma vez se sentira só. Nem uma vez quisera não estar ali após o amor, ou sentira a sensação de tédio que o acometera tantas vezes com outras mulheres. Ao contrário, seus corpos encaixavam-se perfeitamente mesmo após fazerem amor. E as conversas eram carregadas de fascínio com as idéias de ambos, de ternura, de confiança, de um desguardar-se antes desconhecido.
No entanto, permanecia o medo. Retornava à sua cabeça a idéia, ridícula, pensava às vezes - de que pudesse ser controlado, dominado. Como se ela fosse uma bruxa que o tivesse enfeitiçado. Temores ancestrais a baterem à sua porta. Como se não soubesse que ela o queria, que também ela vivera tudo aquilo.

Não tinha palavras que traduzissem a importância do que sentira. Exatamente por isso estava determinado a não mais fazê-lo. Não queria sentir necessidade daquela mulher. E sua decisão não dependia de qualquer outro fato que não fosse sentir-se irremediavelmente atraído por ela. Sabia que quando ela o chamasse, iria. E ela, ele tinha a noção exata disso, amava-o e por isso o chamaria mais cedo ou mais tarde.
Viviam um despojamento de si próprios, o paradoxo de exercerem ao mesmo tempo suas individualidades e fundirem-se num só.

Decidira negar-se a fazer amor com ela, como se a sua natureza estivesse colocada num lugar exterior a si. Assombrado pela sensação de que seu desejo não lhe pertencia, mas a ela. Decidia como quem afirma : sou um Homem, ninguém é meu dono. Extinto o ato, extinguir-se-á o efeito, pensava. Decidia seu destino em meio àquelas sensações estranhas e à angústia. Para o poder fazer, culpava-a. Ela, a terrível.

Não percebia que ao desistir dela, abria mão do que de mais humano, mais completamente amoroso e pessoal, jamais vivera. Sua experiência mais íntima, a que nunca poderia ser vivida por outro. Não se dava conta de que faltaria daí em diante uma parte sua. Não apenas o corpo , o calor, os beijos, a presença, as conversas afinadas, mas seu próprio sentido. A possibilidade de sentir-se vivo e inteiro.

Ao afastar-se mergulhava no paradoxo de afirmar sua independência e negar sua natureza.
Por medo de se perder por ela, perdia-se de si mesmo.

Silvia Chueire

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Levitação

É um movimento que levita, o das mãos a dizerem quase-preces, quase-vidas, quase-sensações. Traz consigo a chama do olhar, a essência de alguma coisa que não podemos definir, algo que arde, eleva-se, nasce do vôo, do mergulho, do fogo, ou do abismo. E quando o gesto se transforma no ato de, tomada a pena, escrever palavras , todo este movimento atinge o auge da transmutação.

As mãos a criarem uma ordem de palavras. Palavras elevando-se como seres recriados, novos no seu esplendor, pássaros estremecidos na sua capacidade de voar. E as mãos a levitarem na enorme distância entre elas e o poema, na curtíssima distância entre elas e o poema.

Aí nos entregamos a um canto que remove todos os obstáculos. E deitamos o corpo, a razão, a desrazão e os sentimentos sem medo, nas mãos das mãos, nas palavras encadeadas.


Silvia Chueire

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Paz

Lembrava-se dela de vez em quando. Na verdade preferia tê-la esquecido completamente. Mas não conseguia livrar-se das sensações que o acometiam. De estar guiando o carro e sentir os dedos dela a lhe acariciarem a nuca, entrando-lhe pelos cabelos. Ou sentar-se num restaurante e ouvi-la falar animadamente sobre coisas e casos, e a ternura a lhe invadir ao ver os olhos dela iluminados. Ou as conversas nas quais era livre como nunca fora, a falar de si. A partilha de idéias, ela a acompanhá-lo com atenção a argumentar com ele, sua inteligência, sua vivacidade.

Não podia impedir que os sentidos tomassem conta dele, se por acaso se deitava para ler, por uma fração de segundos desligado do entorno e lhe viesse a sensação de que ela estava ali, ao seu lado, nua. Ou sentada sobre ele a sorrir de alegria e prazer, os seios soltos, os beijos na sua boca. Assustava-se, atravessado pelo desejo, pela memória tão nítida que podia sentir-lhe o sabor, o cheiro, o tato.

Não que a amasse ainda. Estava satisfeito com sua vida sem percalços, repetia para si mesmo. Apenas não podia evitar as lembranças. A existência sem percalços, se por um lado é consoladoramente sem angústias, por outro lado é também destituída de vida. Vida no sentido vibrante do termo, energia pulsando. Essa era a razão que ele supunha trazer-lhe recordações mesmo que preferisse a paz em que vivia. Aquela paz por vezes exasperante, remexia suas memórias e trazia-as à tona, não mais o amor.

Nunca, é claro, ocorreu-lhe pensar no que, de fato, significava a intensidade das lembranças. Mergulhava a cabeça no trabalho e não pensava uma segunda vez. Até que novamente tudo aquilo se alastrasse por ele adentro. Praticava mentalmente o exercício de reeditar as razões pelas quais a deixara e voltava ao trabalho, ou à atenção na estrada ou ao sofá da sala, onde trocava algumas palavras distantes com a esposa.

As razões... Dívidas acumuladas, todo o seu trabalho atrasado, matérias por terminar, reportagens por fazer, pesquisas que nem iniciara se acumulando sobre a mesa. A angústia de saber-se falho. O esforço incomum que tinha que fazer para não abandonar tudo e correr para ela. Os ciúmes a corroerem-lhe. A dor de sabê-la só e saudosa. A insuportabilidade da distância.
Afastou-se. Será melhor para ela, pensou tentando ser frio.
No fundo sabia que sua decisão era por si mesmo.

Reconhecia que ela ia sofrer as conseqüências. Ambos sofreriam. Apostou todas as fichas no esquecimento rápido e foi em frente. Um telefonema breve e estamos terminados. Desligou o telefone sem lhe dar tempo para perguntas. Ela se recuperaria e seria feliz novamente com outro (o frio da culpa, súbito, no peito).

Nada era rápido. Há uns anos realizara esta intervenção, cirúrgica. Convencera-se que só conseguira faze-lo por não a amar como no princípio. Lembrava-se de ter acumulado pequenos rancores, pequenas mágoas, um arsenal de armas possíveis contra aquele amor. E por fim, o rompimento.

Imerso no trabalho voltara a ser o homem bem sucedido, admirado, que sempre fora. Convidado a dirigir um Jornal de grande prestígio. A imprensa ganhara de volta o competente jornalista. Com algum cinismo, alguma ironia e sem brilho no olhar. Quem se importa com isso?

Doze horas por dia a trabalhar. Se o telefone tocasse, olhava o display de cristal líquido: era ela, não atendia. Não abria as cartas, não enviara nenhuma. Exilara-a e se exilara dela. Escrevia todas as matérias, pontualmente. As dívidas pagas. Nenhuma angústia nem pressa porque queria vê-la, porque precisava bebê-la, porque queria saborear suas palavras e olhar longamente aqueles olhos .

Nada. Nada mesmo. A vida voltara a ser calma, conversava com os colegas as mesmas conversas superficiais dos almoços, e as importantes para o trabalho. Com a esposa falava o necessário, como sempre.
Agora só o sexo casual nas tardes em que olhava as outras mulheres com algum desejo. Nessas tardes o susto de não a achar naquelas camas, naquelas coxas. De não se achar. O espanto retomado da diferença. Eram casuais, o sexo e o gozo. Conformara-se com isto. Mas sabia.

O tempo a passar, e ele na certeza de que era assim que devia ser. A merda eram aquelas memórias a assaltarem-no, pensava. A saudade, orgânica, que sentia dela. O buraco na pele, no peito, no sexo, em que a cicatriz se transformara. Dava de ombros e retomava a leitura, o trabalho, os goles de vinho. Redobrava a sua aplicação no que fazia.

Não a amava mais, ponto. Tudo era pacífico, até os telefonemas dela rareavam, depois destes anos. Paz, repetia para si mesmo. Mas volta e meia sua mente se rebelava e voava para o que poderia ser sido se ele tivesse tido a calma de esperar as coisas chegarem a seu tempo.


Às vezes lhe ocorria que a paz suprema, sem memórias , nem espantos, só a encontraria na morte. Merda.


Silvia Chueire

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

sobre escolhas

não, meu amigo, não negocio um milímetro. não cedo, não dou um passo atrás neste assunto. se é que se pode chamar assunto.
a minha é uma dessas vidas que só faz sentido de um modo. e esse é um modo apaixonado. não há barganha possível. não me ofereça estabilidade, consistência, carinhos sem ardor, sexo eficaz.

não me importo de roer a eventual angústia de estar só. aumento o volume do som, canto mais alto, danço pela sala, recolho-me a examinar cuidadosamente as circunstâncias, ou choro. estar só não é um desastre. se uma ou outra vez dói capitular, a farsa de estar acompanhada tem peso demasiado. a pragmática opção da escolha de um companheiro, sem amor não vale a pena, é algo ainda mais frio do que eventualmente estar só pode ser. não, não faço por menos. há de ser amorosamente, apaixonadamente ou nada.

há casos em que se perdem os sonhos. não sou um deles . perder o sonho é a fratura do olhar. é render-me à lisura dos dias, como se nada houvesse além das horas contadas em minutos e o horizonte fosse ali, plano, sem enigmas.

a vida é cheia de perguntas e incertezas. uma janela aberta é uma ponte, um filme, o convite para o vôo, uma fuga, uma alegria intensa, saber-me viva, única, e tão obviamente parte do todo. o sonho é sempre maior que nós, é o que nos engrandece. a realização do sonho é a prova cabal de que é possível.

assim, não me peças o que pedes. quero o amor, a música e a dança contidas nele. toda a poesia. vertigem, voragem e liberdade em corpos que se perdem. o deleite de partilhar o que penso, o que sinto, o que pensa e sente o outro. fazer feliz. fazer feliz é uma dedicação que encerra um tipo de prazer indizível.
a paixão, o amor, não têm apenas uma história, são muitos os enredos. e tão diversos.
não quero que a vida, a minha vida, seja uma fotografia em sépia. quero significados em todos os gestos. todos os que possa fazer significar.

certamente cada um terá a sua escolha, ou será levado pelos acontecimentos. não discutirei de que lado se encontra a razão. há sempre uma voz a dizer que o amor é ridículo. sempre alguma voz a razoar com a idade, a maturidade, a compostura. como se o tempo nos tornasse menos humanos. ou a maturidade menos sensíveis.

calarei sobre as escolhas que fizeste ou as que foste levado a fazer.
porém, enquanto puder dirigir-me tomo a direção que achar melhor, faço a minha escolha. portanto aí estão minhas cartas, na mesa. e a minha aposta. pretendo não menos que a felicidade.


silvia chueire