sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Sobre o Natal

Os olhos acesos tocavam-nos a pele. Era uma canção conhecida e a árvore engalanada e o sonho a crescer e retomar seu lugar usurpado pelo pragmatismo dos dias. Novamente a paz , a esperança, a alegria, o amor, reinavam em meio ao sonho de Natal. Em meio a nós, a família reunida.

Deve ser este o princípio das coisas. O princípio pelo qual as pessoas acreditam que um deus nasceu num certo dia. Que um deus sacrificou-se por elas, Um deus de paz e amor. Que por isto comemoram a data do nascimento. Ainda que simbólica.

Faz um sentido estranho que afinal, mesmo que não o creiamos deus, o resultado seja o que ele gostaria.


Silvia Chueire

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

morrer

Morri novamente, uma morte definitiva .

O amor acaba, mas não deixa de ser amor. Ferir o amor acabado é manchar a sua memória.


Silvia Chueire

terça-feira, 13 de outubro de 2009

mentir

repousei a cabeça no teu corpo com a calma de quem sabia a verdade daquele momento. nunca precisei mentir a mim mesma.

tu repousaste teu corpo fraco sobre a mentira e a disseste como se tudo fosse pouco.

mentir, a tua vida a depender disto. a tua vida sem encantos.


silvia chueire

segunda-feira, 28 de julho de 2008

"You’ve got to give a little"

Paula Rego- Flying children


Tudo foi um susto. Respirei uma vez. Uma vez apenas antes do beijo. Foi o suficiente para que me ardesse o corpo todo. Depois, foi o delírio. Dias e noites dos quais me lembro feito fossem minutos, segundos a desdobrarem-se em mais que tempo. Milhares de pequenos fragmentos de gestos, palavras, cenários. Uma incongruência de tempo e possibilidade.

O que chamamos vida entrecortada pelo poema, talvez isso. Algo entre o sonho, o desejo do sonho e a sensação de realização deles. Um relógio só aparentemente correto, um oceano de afeto, a disposição de dizer a verdade, a sensibilidade e o sexo. Foi o que bastou.
Suponho que o amor possa acontecer assim e não há realidade que o negue.

O corpo atravessado pela tua marca, a alma dançarina. A sensação da mais íntima de compreensão das coisas.
O sorriso fresco da felicidade. A felicidade tem um sorriso de um frescor ímpar e um olhar rejuvenescido.

O cd toca assim : "you've got to give a little, take a little and let your poor heart brake a little. That's the story of, that's the glory of love ". É uma linda canção. Os americanos acreditam nisso. Eu não. No amor há que haver dor, eles dizem. Não foi o que senti. Nenhum sofrimento naqueles dias. Nada negociado. A glória do amor nos habitava. Estávamos em pleno ar.

De mim o que sei é o vôo, o mergulho. Sem fronteiras. Até onde tiver que ir. Até o corte. Sem penitência. Sem medo.

Não sei mais de ti.


Silvia Chueire

segunda-feira, 24 de março de 2008

Não posso mais fazer amor contigo - um paradoxo

Não vou mais fazer amor contigo, dissera-lhe decidido.
A necessidade de controle - de se saber dono de si mesmo, como se o desejo o desmantelasse. Como se em cada orgasmo, naquele momento em que se sentia fora de si, pudesse mesmo deixar de ser definitivamente. A ameaça de para além do prazer, abandonar-se ali. Logo ele, tão cioso de sua auto-suficiência.

Não mais fazer amor com ela, exatamente porque era tão bom fazê-lo. A obsessão que o perseguia. A obsessão por ela e a obsessão de não vir a ser subjugado por ela, pelo amor, de modo que sempre que ela quisesse o teria. A necessidade angustiada e compulsiva de se afastar. Tal qual um pecador se afasta do pecado, ou um jogador se afasta do jogo. Fugir da tentação do demônio. Ele, o ateu. Sabia, no seu íntimo, que ninguém, mulher ou homem, era seu dono, ninguém o possuía. Apesar disso, tinha aquele fantasma a assombrá-lo.

A descoberta da liberdade, ao fazer amor, fora fascinante. O amor no seu estado natural, livre. Era um homem experiente e nunca tinha vivido aquela plenitude. Tinha consciência de que a surpresa não era apenas sua. Vira o rosto dela iluminado. Percebera-lhe a perplexidade, o sorriso no olhar. Sentira-a nos gemidos, na umidade macia do sexo, ele na sua inteireza, a penetrá-la como se aquele tivesse sido sempre o seu lugar. Sabia da entrega daquele corpo, do absoluto que viviam. Estremecimento mútuo. Alegria mútua.

Nem uma vez se sentira só. Nem uma vez quisera não estar ali após o amor, ou sentira a sensação de tédio que o acometera tantas vezes com outras mulheres. Ao contrário, seus corpos encaixavam-se perfeitamente mesmo após fazerem amor. E as conversas eram carregadas de fascínio com as idéias de ambos, de ternura, de confiança, de um desguardar-se antes desconhecido.
No entanto, permanecia o medo. Retornava à sua cabeça a idéia, ridícula, pensava às vezes - de que pudesse ser controlado, dominado. Como se ela fosse uma bruxa que o tivesse enfeitiçado. Temores ancestrais a baterem à sua porta. Como se não soubesse que ela o queria, que também ela vivera tudo aquilo.

Não tinha palavras que traduzissem a importância do que sentira. Exatamente por isso estava determinado a não mais fazê-lo. Não queria sentir necessidade daquela mulher. E sua decisão não dependia de qualquer outro fato que não fosse sentir-se irremediavelmente atraído por ela. Sabia que quando ela o chamasse, iria. E ela, ele tinha a noção exata disso, amava-o e por isso o chamaria mais cedo ou mais tarde.
Viviam um despojamento de si próprios, o paradoxo de exercerem ao mesmo tempo suas individualidades e fundirem-se num só.

Decidira negar-se a fazer amor com ela, como se a sua natureza estivesse colocada num lugar exterior a si. Assombrado pela sensação de que seu desejo não lhe pertencia, mas a ela. Decidia como quem afirma : sou um Homem, ninguém é meu dono. Extinto o ato, extinguir-se-á o efeito, pensava. Decidia seu destino em meio àquelas sensações estranhas e à angústia. Para o poder fazer, culpava-a. Ela, a terrível.

Não percebia que ao desistir dela, abria mão do que de mais humano, mais completamente amoroso e pessoal, jamais vivera. Sua experiência mais íntima, a que nunca poderia ser vivida por outro. Não se dava conta de que faltaria daí em diante uma parte sua. Não apenas o corpo , o calor, os beijos, a presença, as conversas afinadas, mas seu próprio sentido. A possibilidade de sentir-se vivo e inteiro.

Ao afastar-se mergulhava no paradoxo de afirmar sua independência e negar sua natureza.
Por medo de se perder por ela, perdia-se de si mesmo.

Silvia Chueire

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Levitação

É um movimento que levita, o das mãos a dizerem quase-preces, quase-vidas, quase-sensações. Traz consigo a chama do olhar, a essência de alguma coisa que não podemos definir, algo que arde, eleva-se, nasce do vôo, do mergulho, do fogo, ou do abismo. E quando o gesto se transforma no ato de, tomada a pena, escrever palavras , todo este movimento atinge o auge da transmutação.

As mãos a criarem uma ordem de palavras. Palavras elevando-se como seres recriados, novos no seu esplendor, pássaros estremecidos na sua capacidade de voar. E as mãos a levitarem na enorme distância entre elas e o poema, na curtíssima distância entre elas e o poema.

Aí nos entregamos a um canto que remove todos os obstáculos. E deitamos o corpo, a razão, a desrazão e os sentimentos sem medo, nas mãos das mãos, nas palavras encadeadas.


Silvia Chueire

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Paz

Lembrava-se dela de vez em quando. Na verdade preferia tê-la esquecido completamente. Mas não conseguia livrar-se das sensações que o acometiam. De estar guiando o carro e sentir os dedos dela a lhe acariciarem a nuca, entrando-lhe pelos cabelos. Ou sentar-se num restaurante e ouvi-la falar animadamente sobre coisas e casos, e a ternura a lhe invadir ao ver os olhos dela iluminados. Ou as conversas nas quais era livre como nunca fora, a falar de si. A partilha de idéias, ela a acompanhá-lo com atenção a argumentar com ele, sua inteligência, sua vivacidade.

Não podia impedir que os sentidos tomassem conta dele, se por acaso se deitava para ler, por uma fração de segundos desligado do entorno e lhe viesse a sensação de que ela estava ali, ao seu lado, nua. Ou sentada sobre ele a sorrir de alegria e prazer, os seios soltos, os beijos na sua boca. Assustava-se, atravessado pelo desejo, pela memória tão nítida que podia sentir-lhe o sabor, o cheiro, o tato.

Não que a amasse ainda. Estava satisfeito com sua vida sem percalços, repetia para si mesmo. Apenas não podia evitar as lembranças. A existência sem percalços, se por um lado é consoladoramente sem angústias, por outro lado é também destituída de vida. Vida no sentido vibrante do termo, energia pulsando. Essa era a razão que ele supunha trazer-lhe recordações mesmo que preferisse a paz em que vivia. Aquela paz por vezes exasperante, remexia suas memórias e trazia-as à tona, não mais o amor.

Nunca, é claro, ocorreu-lhe pensar no que, de fato, significava a intensidade das lembranças. Mergulhava a cabeça no trabalho e não pensava uma segunda vez. Até que novamente tudo aquilo se alastrasse por ele adentro. Praticava mentalmente o exercício de reeditar as razões pelas quais a deixara e voltava ao trabalho, ou à atenção na estrada ou ao sofá da sala, onde trocava algumas palavras distantes com a esposa.

As razões... Dívidas acumuladas, todo o seu trabalho atrasado, matérias por terminar, reportagens por fazer, pesquisas que nem iniciara se acumulando sobre a mesa. A angústia de saber-se falho. O esforço incomum que tinha que fazer para não abandonar tudo e correr para ela. Os ciúmes a corroerem-lhe. A dor de sabê-la só e saudosa. A insuportabilidade da distância.
Afastou-se. Será melhor para ela, pensou tentando ser frio.
No fundo sabia que sua decisão era por si mesmo.

Reconhecia que ela ia sofrer as conseqüências. Ambos sofreriam. Apostou todas as fichas no esquecimento rápido e foi em frente. Um telefonema breve e estamos terminados. Desligou o telefone sem lhe dar tempo para perguntas. Ela se recuperaria e seria feliz novamente com outro (o frio da culpa, súbito, no peito).

Nada era rápido. Há uns anos realizara esta intervenção, cirúrgica. Convencera-se que só conseguira faze-lo por não a amar como no princípio. Lembrava-se de ter acumulado pequenos rancores, pequenas mágoas, um arsenal de armas possíveis contra aquele amor. E por fim, o rompimento.

Imerso no trabalho voltara a ser o homem bem sucedido, admirado, que sempre fora. Convidado a dirigir um Jornal de grande prestígio. A imprensa ganhara de volta o competente jornalista. Com algum cinismo, alguma ironia e sem brilho no olhar. Quem se importa com isso?

Doze horas por dia a trabalhar. Se o telefone tocasse, olhava o display de cristal líquido: era ela, não atendia. Não abria as cartas, não enviara nenhuma. Exilara-a e se exilara dela. Escrevia todas as matérias, pontualmente. As dívidas pagas. Nenhuma angústia nem pressa porque queria vê-la, porque precisava bebê-la, porque queria saborear suas palavras e olhar longamente aqueles olhos .

Nada. Nada mesmo. A vida voltara a ser calma, conversava com os colegas as mesmas conversas superficiais dos almoços, e as importantes para o trabalho. Com a esposa falava o necessário, como sempre.
Agora só o sexo casual nas tardes em que olhava as outras mulheres com algum desejo. Nessas tardes o susto de não a achar naquelas camas, naquelas coxas. De não se achar. O espanto retomado da diferença. Eram casuais, o sexo e o gozo. Conformara-se com isto. Mas sabia.

O tempo a passar, e ele na certeza de que era assim que devia ser. A merda eram aquelas memórias a assaltarem-no, pensava. A saudade, orgânica, que sentia dela. O buraco na pele, no peito, no sexo, em que a cicatriz se transformara. Dava de ombros e retomava a leitura, o trabalho, os goles de vinho. Redobrava a sua aplicação no que fazia.

Não a amava mais, ponto. Tudo era pacífico, até os telefonemas dela rareavam, depois destes anos. Paz, repetia para si mesmo. Mas volta e meia sua mente se rebelava e voava para o que poderia ser sido se ele tivesse tido a calma de esperar as coisas chegarem a seu tempo.


Às vezes lhe ocorria que a paz suprema, sem memórias , nem espantos, só a encontraria na morte. Merda.


Silvia Chueire

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

sobre escolhas

não, meu amigo, não negocio um milímetro. não cedo, não dou um passo atrás neste assunto. se é que se pode chamar assunto.
a minha é uma dessas vidas que só faz sentido de um modo. e esse é um modo apaixonado. não há barganha possível. não me ofereça estabilidade, consistência, carinhos sem ardor, sexo eficaz.

não me importo de roer a eventual angústia de estar só. aumento o volume do som, canto mais alto, danço pela sala, recolho-me a examinar cuidadosamente as circunstâncias, ou choro. estar só não é um desastre. se uma ou outra vez dói capitular, a farsa de estar acompanhada tem peso demasiado. a pragmática opção da escolha de um companheiro, sem amor não vale a pena, é algo ainda mais frio do que eventualmente estar só pode ser. não, não faço por menos. há de ser amorosamente, apaixonadamente ou nada.

há casos em que se perdem os sonhos. não sou um deles . perder o sonho é a fratura do olhar. é render-me à lisura dos dias, como se nada houvesse além das horas contadas em minutos e o horizonte fosse ali, plano, sem enigmas.

a vida é cheia de perguntas e incertezas. uma janela aberta é uma ponte, um filme, o convite para o vôo, uma fuga, uma alegria intensa, saber-me viva, única, e tão obviamente parte do todo. o sonho é sempre maior que nós, é o que nos engrandece. a realização do sonho é a prova cabal de que é possível.

assim, não me peças o que pedes. quero o amor, a música e a dança contidas nele. toda a poesia. vertigem, voragem e liberdade em corpos que se perdem. o deleite de partilhar o que penso, o que sinto, o que pensa e sente o outro. fazer feliz. fazer feliz é uma dedicação que encerra um tipo de prazer indizível.
a paixão, o amor, não têm apenas uma história, são muitos os enredos. e tão diversos.
não quero que a vida, a minha vida, seja uma fotografia em sépia. quero significados em todos os gestos. todos os que possa fazer significar.

certamente cada um terá a sua escolha, ou será levado pelos acontecimentos. não discutirei de que lado se encontra a razão. há sempre uma voz a dizer que o amor é ridículo. sempre alguma voz a razoar com a idade, a maturidade, a compostura. como se o tempo nos tornasse menos humanos. ou a maturidade menos sensíveis.

calarei sobre as escolhas que fizeste ou as que foste levado a fazer.
porém, enquanto puder dirigir-me tomo a direção que achar melhor, faço a minha escolha. portanto aí estão minhas cartas, na mesa. e a minha aposta. pretendo não menos que a felicidade.


silvia chueire

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

magritte-human condition


Outono



Olhei para o céu e para o chão, e de novo para o céu,
Era outono. Havia folhas no chão e um céu limpo, quando me disseste naquela manhã repentina, depois de estares na minha casa há muitos dias e na minha cama por um número igual de dias:

- Não é possível ficar, por tua causa não consigo pintar.

Olhei para a folhas secas a teimar com elas, como se me tivessem dito um absurdo direto da sua secura.
Sou uma mulher, e mulheres não devem derramar lágrimas em vão, principalmente no ambiente em que vivemos. E teimei forte. Calada. Não tinha palavras.

-Por que não voltas? Por que não vais? Por que não ficas? Nasciam da minha garganta atropelando-se, contra a minha vontade. Contive-os.

Suponho que uma boa solução era ter dois amantes. um para o verão, nadaríamos juntos, outro para o inverno quando fizesse muito frio, que me aquecesse. Ou talvez quatro, um para cada estação. Porque neste caso, é certo que não me dirias nada e eu não teimaria com as folhas.
Preciso encontrar uma solução razoável para este teu tipo de statement.
uma indiferença digna, de ascendência real, sem angústias. Mais ou menos assim:

- Olha, hoje mudo de amante e pintarás à vontade.

Mas calei.

Engraçado pensei, olhando o céu, outro homem na primavera, escreve seus livros sem problemas e além disso toca um esplêndido violino enquanto me dispo.
Mas era outono. O céu estava muito azul. Era outono e descuidei-me. O outono da cidade nítida, dos pássaros, não te pertencia. Era só meu.
E repetiste:

- Desculpa-me mas é verdade, por tua causa não consigo produzir nada.

As mentiras têm formas engraçadas, fazem-me lembrar aqueles brinquedos de criança. Tubos com espelhos no fundo e cacos de vidro coloridos que conforme giramos mudam as imagens espelhadas e nos encantam. Não pintas por razões que nada têm a ver comigo, quis dizer. Mas nada disse. Não pintas mesmo que eu cuide de tudo para que estejas bem. Não pintas agora porque não consegues te ultrapassar a ti mesmo, Não tens outro sentimento a não ser teu amor por ti . E ele te impede de amar os outros e de pintar. Não amas e te vais. É esta a tua história. É assim que são as coisas, mas não queres saber. E eu me calo.

O da primavera quando é inverno me aconchega em mantas de lã, sob as quais dormimos nus e fazemos amor. Canta-me canções e eu lhe digo poemas. Como fui me descuidar assim? Trocar estações, enganar-me deste modo?

E finalmente eu disse:

- Já entendi. Tu não pintas e a causa disto sou eu, mesmo que poucas vezes façamos amor, ou conversemos, porque precisas pensar nos teus quadros. Mesmo que tenhas todas as horas vagas sem ser incomodado que precisarias. Acho que tens razão, era mesmo hora de ires.

Tive uma enorme saudade da primavera, e depois das mantas de lã –que chegarão a seu tempo- dos violinos e dos olhos cravados em mim. Das canções e da língua que me conhece tanto.
E uma noção absurdamente clara da estupidez de não ter compreendido antes o que te impedia de pintar.

E abri a porta.
- Adeus.

Silvia Chueire

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

No meio do mundo



Estava de pé no meio do mundo. No meio da cidade. No meio da casa. No meio da vida. Hirto, sem dizer palavra, estava de pé no meio da balbúrdia do universo.
Tinha 27 anos e estava ali, de pé, os olhos azuis, fixos, atravessando as paredes, voltados para o rumor que escutava, um rumor, um murmúrio de vozes, uma delas elevada sobre todas as outras.
Estava de pé há muitas horas no meio do mundo. Os cabelos louros chegando aos ombros, o tronco nu, as pernas inchadas do tempo que permanecia parado no meio da sala.
À sua volta andavam a mãe, a irmã, o pai, atarantados, a falar com ele palavras que ele ignorava, que se misturavam, insignificantes, ao rumor que ouvia, por trás da outra voz, nítida . Eram palavras de absoluta incompreensão sobre ele, sobre o que estava acontecendo, sobre o seu destino, o seu dever, sua importância nos acontecimentos .

A família chamava-o para fora disto, para coisas pequenas da vida mínima de todos os dias, que não interessavam. Queriam-no para eles. E insistiam, insistiam. Ele não prestava atenção. A vida não era nada daquilo. Era maior que eles. Que ele, que a cidade, que o café da manhã, o jantar, ou ir ao banheiro. Maior do que a sua idade, as diversões, ou o prazer. A vida era grande e podia ser aguda. Um mar e uma gota para um afogamento. Uma faca, um passo além da borda da janela até o corpo se estatelar no chão. Os tiros e os micro intervalos entre os tiros de uma metralhadora, o cravar das balas na carne. Eles não sabiam de nada.

A vida, ele sabia, ali de pé, era um emaranhado de coisas e homens, pensamentos e inutilidades, desorganização e pessoas perdidas, cidades perdidas, nações perdidas. O tempo a pressionar o pensamento dos homens. As mortes, a miséria, as guerras. Isto era a vida! Não as palavras dos livros, ou as especulações dos filósofos. A vida era o sangue correndo sem parar e o mundo, a terra, a desfazer-se. O vontade de todos que o mundo se recuperasse e ninguém fazendo nada. A esperança vazia, porque os homens sempre esperam e a vida os morde cada vez com maior fome, com maior crueldade.
E ele ali, sua responsabilidade olhando-o, à espera de que ele cumprisse a sua parte. Os pensamentos partidos feito trens com suas linhas ferroviárias a se entrecruzarem, umas interrompidas, outras se superpondo. Os pensamentos feito uma geometria doida.
Difícil pensar. A emoção machucava o peito.
Doiam-lhe as costas, os músculos. As pernas e pés, já não se lembrava de senti-los. Tivera sede e a ignorara. A cabeça, sentia-a zonza. Fazia certo calor e a luz fora mantida acesa, anoitecia, percebeu. Ele transpirava.

As pessoas em torno faziam-lhe perguntas que já não respondia há horas. Se estava com fome, se não queria sentar-se, descansar.
Por favor, meu filho, dormir, comer, tomar um banho morno, por favor, meu filho.
Trivialidades. Tivera fome e sono e cansaço nas primeiras horas. Agora vagava, mas não vacilava um segundo sequer. Dali não podia afastar-se.
Sustentava o mundo, que dependia dele, com a tenacidade de quem evita a desgraça.

Súbito pressentiu a entrada na sala de alguém que lá não estava antes. Talvez porque seus pais se afastaram, talvez porque uma campainha tocara. Minutos depois, não soube, nem se interessou em precisar quantos, aproximou-se dele uma mulher, de rosto sério, porém pacífico. Pareceu-lhe ouvir a mãe dizer : esta é a doutora que veio lhe ajudar. Não teve sobressaltos, sabia qual o seu destino, sua tarefa. Uma doutora nada tinha a ver com tudo aquilo. A Voz, o rumor e a Voz, obedecia . O mundo era pesado.

Compreendera como seriam importantes as coisas, ao sair do banheiro dias antes e deparar-se com a visão de um cavalo alado saindo do vaso sanitário. O cavalo belíssimo crescendo à sua frente, as asas se abrindo brancas, lindas. Espetacular. Os pelos do corpo arrepiados, arregalara os olhos o que é isso, meu Deus ? Adrenalina, coração rápido, medo e espanto. Em seguida deu-se conta de que aquilo tinha um significado e na paulatina tentativa de entender, foi se acalmando. Aquela não era uma visão má. Pegasus o cavalo dos deuses? E percebeu o privilégio de ser o homem que podia ver, que sabia o que os outros não sabiam.
Antes de tudo isto sabia que algo estava para acontecer, tinha a sensação de expectativa, ainda que não soubesse o que esperava, tinha atenção. Tantas coisas parecendo estranhas...
Depois as coisas foram evoluindo, os vizinhos a falarem dele. Sempre a falarem mal dele, ele ouvia, cochichos. Ignorantes, invejosos da sua sabedoria... A angústia de saber que as pessoas não entendiam do que ele falava, quando o fazia. E ele às vezes tentava, cada vez menos.

Precisava se manter firme apesar da dor intensa, das pernas que sentia quentes. Bebera um gole de água por insistência da mãe, mas não se movera do meio da sala. Como poderia mover-se do centro do mundo?

A mulher aproximou-se muito calma, chamou-o pelo nome:
- João ? ele imóvel, os olhos semi-cerrados.
- João, preciso conversar com você, ela disse.
- Diga, por que você está no meio do quarto há tantas horas parado? Converse comigo, diga o que há.
- ...
Quem era aquela mulher? E pensou, nada me removerá daqui.
- Que tal nos sentarmos mais confortáveis ? Você está aí há quase 24 horas, sua mãe me disse. Isso é exaustivo. Eu também estou cansada, era melhor conversarmos sentados. Que tal? E deu um leve sorriso.
- ...
- Você precisa ao menos beber água, comer alguma coisa, ir ao banheiro.

O tom calmo da voz, o rosto dela sem aflição, pareciam amigos. Lembrou-se da vontade de urinar que o havia atormentado no início, da sede. Tudo agora era só dor, a agonia pela qual tinha que passar, estar ali de pé, o mundo sobre a sua cabeça, as milhares de vozes do mundo. Não percebiam. Eram incapazes de entender que ele não podia sair dali, que se pudesse correria para o banheiro, ou para o sofá. Mas a sua consciência da importância das coisas e a Voz, que se sobrepunha a todas as outras, o mantinham firme.

Seus pais haviam silenciado, confiando à mulher o diálogo. O rumor longínquo de vozes persistia, falavam dele. Manteve a cabeça ereta, o olhar voltara para a parede. Através da parede olhava para tudo, no seu pensamento, a vida, homens a matarem-se, a morrerem de fome, os gritos de socorro. E tinha certeza absoluta do que devia fazer. Ouvira claramente tantas vezes: depende de você. As notícias na televisão a falarem dele, da fé que tinham nele. Os vizinhos olhando-o, ora desconfiados, ora maldosos, fora ele o escolhido. A confusão das ruas esperando que ele cumprisse seu papel .

- João ? ouviu novamente. Está bem, conversamos aqui mesmo. Diga-me, porque é que você está nesta posição há mais de 24 horas? O que há? Eu não entendo e gostaria de entender.

Nem ela entendia nada! Eles não tinham a menor idéia do que se passava. Pobres de espírito.
Sentiu-se irritado por entre o sofrimento todo, certa exultação por ter sido escolhido, e os pensamentos partindo-se, as vozes. Farei o que deve ser feito.
Gente imbecil !
Olhou para ela, para aqueles mansos olhos castanhos, pronto a dizer um palavrão. Mas sentiu-a solidária. Refreou a raiva e enfim, numa última tentativa, rompeu o silêncio, dizendo em tom alto :
- Será que você não vê que não posso !? Estou de pé no centro do mundo! O equilíbrio das coisas depende de mim, só de mim. Deus me incumbiu de manter o equilíbrio da vida na terra, da vida dos homens, tem me repetido isto há dias. Só há horas percebi claramente que era a voz Dele e que tudo depende apenas de mim ! Se eu me mover daqui tudo vem abaixo, o mundo se desfaz ! Não posso me mover. Não posso. A televisão disse, os vizinhos estão... Cala a boca! Voltou o rosto para o lado de onde ouvira um risinho de deboche. Meus pais não sabem de nada, nem você, pelo jeito.
A dor atravessando-lhe a coluna, a garganta seca, o abdome contraído. Os olhos de novo na parede.

Ela baixou o olhar. Baixou-o na percepção agudíssima do sofrimento daquele homem. Manter o equilíbrio do mundo, a tarefa gigantesca. Durante algum tempo ainda tentou conversar com ele. Precisava convencê-lo a conversar, trazê-lo para perto. Esperava que alguma luz se fizesse dentro dele, mas a que ele via era outra...
Depois ofereceu-lhe água e uns comprimidos. Tinha que tentar, embora soubesse ser mais que mínima a probabilidade de que ele os aceitasse. Nada. Ele não queria comprimidos, água, nada. Não respondeu mais, imóvel.

Saiu dali com a clareza do que estava acontecendo e dirigiu-se aos pais.
- Creio que será preciso interná-lo, ele está sem tomar medicação há muito tempo e a situação tem-se agravado. Se esperarmos mais, tudo se complica do ponto de vista físico também. Chamarei a ambulância, está bem? E deu um telefonema.
Os pais, a irmã, sem saberem o que dizer. Explicou :
- A recusa de tratamento piora tudo, e não creio que ele vá sair dali a não ser num desmaio de exaustão.
Seus motivos são demasiado importantes, ela pensou pesarosa, o mundo depende dele. Voltou à sala.
- João, ficarei aqui com você algum tempo, mesmo que você não queira falar. Estou aqui se você precisar de mim.

Ele se manteve calado. Uma companhia sem exigências, ao menos isso.



Silvia Chueire

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Deus é pai


Ia pela calçada da praia revendo a beleza e o mar que lhe acalmavam e sempre lhe traziam uma alegria interna.

O salto fino do sapato ficou preso na calçada de pedras portuguesas. O corpo inclinou-se para frente, preso o pé, e antes do tombo provável ela se apoiou no primeiro braço que ia passando. Surpreso, ainda assim ele a sustentou.
Passado o susto, o constrangimento ainda no ar, pedidos de desculpas. Os de praxe, sem muito exagero. Por uma fração de minuto teve a nítida impressão de que ele se divertia com o seu constrangimento. Como se eu andasse por aí a me agarrar ao braço do primeiro que passa , pensou. Meu Deus, ele é bonito! Pior, vai pensar que é isso.

- Ainda precisa ajuda? Tem certeza que não se machucou? Seu tom era cuidadoso.
Ela pensando, tomara tivesse algum machucadinho, ele me levaria no colo?

- Não, obrigada, respondeu com um sorriso leve, os olhos a olhá-lo de baixo para cima, pois se inclinara um pouco como a conferir o bem-estar do tornozelo.
E olhou-o certa de que o sorriso e o olhar azul eram suas melhores armas. É agora ou nunca! E pôs-se ereta. Ele era um tanto mais alto ainda. Os olhos castanhos claros também sorriam. Parado olhando-a.

-Está bem, então. Até outra vez.
O sorriso nos olhos dele, não sabia se ele brincava ou hesitava.
Nada mais a dizer, estava bem, não caíra e ele queria ir embora. Não podia abordá-lo, que tal tomar um café comigo? . Não tinha jeito para isto. Iria embora também, se possível antes dele. Sorriu um sorriso sem graça, ajeitou a bolsa no ombro, passou a mão na saia, como que a limpar algum cisco e deu o primeiro passo. Seu corpo abruptamente desequilibrou-se, os joelhos cederam. Só viu os braços dele se estendendo.

– Deus é pai! – estava quebrado o salto


Silvia Chueire

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Morte e sobre-morte




Morte

Os pensamentos atravancando a garganta, a cabeça, o peito, o corpo todo. Devia ser permitido ao ser humano dizer seus pensamentos na desordem em que deságuam em que se enfurecem e crescem mais que nós. Talvez aliviasse a angústia. Talvez.
Mas não, tudo era uma confusão misturada ao esforço extremo para dar conta de algo sobre o qual se sabe apenas que ameaça, amedronta, tem braços que nos apertam o tórax e nos calam a voz. Fingimos e falamos calmamente: está tudo bem.

Menos de vinte e quatro horas decorridas da primeira ida ao médico com a mãe, já sabia: era grave. A imagem do exame era clara, um cérebro infestado, nódulos - de quê?
Gostaria de recusar todo o conhecimento que tinha. Todos os pensamentos que se articulavam rapidamente em imagens, sintomas, probabilidades. O despenhadeiro das probabilidades.


Difícil era conseguir conter o conhecimento, o susto, a vontade de chorar, para exibir um sorriso franco, firme: está tudo bem, a não ser por uma coisinha à toa. Mentirosa!Disse a si mesma, a culpa misturada à pena, das duas. A impotência misturada à dor. A dor aguda de perceber claramente o risco, a vida a tirá-la dela.

Atravessar a cidade como se nada houvesse acontecido, conversando banalidades e pequenas observações: amanhã falamos com o seu médico para começar a investigar isto, talvez seja uma micro calcificação antiga, destas da idade, dizia . Sabia que era esperada dela uma opinião, era a filha mais velha e médica. E respondia às perguntas hesitantes com o jeito calmo de quem não temia. Minimizava riscos, inventava hipóteses. A mãe corria risco de vida e elas conversavam bobagens. O tempo escorrendo pela janela do automóvel. O tempo de redobrado valor. Tudo tão urgente e pararam na padaria a pedido da mãe. Queria poder chorar e agarrar-se a ela como fazia quando criança. Mãe, não vá! Egoísta, pensou, sou uma egoísta.

Depois, a tortura dos irmãos a lhe perguntarem todos os dias a mesma coisa, todos os dias se com certeza o diagnóstico era fatal. A tortura de ter que lhes responder centenas de vezes que sim. Que sim. Que sim! Pelo amor de deus, parem de me fazer esta pergunta, ela fere, a resposta fere! Quis gritar.

Depois, o desenrolar de dias de medo, confirmações, esperanças ruídas, a mãe perplexa, sem fazer perguntas. O desfilar de situações tão conhecidas, o corpo da mãe escapando ao controle, o espanto delas com tudo isso, a sensibilíssima pele de emoções na qual a mãe se transformou. A vida despedindo-se.
Por último a semana de hospitalização, a rápida corrida da morte contra a vida. A morte eficaz. A impotência assumindo ares de rainha.
O silêncio da morte. O abraço apertado da morte. O último abraço. A dor. A dor.



Sobre-morte


Abriram o caixão. A mãe ainda jazia lá. A mãe era aquela espécie de corpo. A mulher era aquele corpo descarnado. A morte tem palavras estranhas para nos falar da vida. Deu dois passos atrás, ainda que se os não víssemos. Mentalmente deu dois passos atrás.

Teve algum dia a ilusão científica ou mitológica, não sabia bem, de que aquele corpo não seria mais a mãe, seria pó, ou algum esqueleto sem personalidade, nenhuma história dizendo coisa alguma pelas cavidades orbitárias, apenas denominações anatômicas.

O que fazer quando os olhos se despregam da nossa cara e colam-se a um corpo deteriorado na incredulidade de que aquele seja o fim, aquela afronta?

Não que desconhecesse o fim. O fato é que a mãe, o corpo da mãe, os restos da mãe, vestiam o mesmo vestido e calçavam os mesmos sapatos. E ainda que se esforçasse por não reconhecê-la, ali estava ela.

O soco na boca do estômago das convicções e das convicções por trás das convicções, a sacudi-la. O soco na boca do estômago. Sua ilusão sacudida ante a natureza das coisas.
E por cima de tudo aquele corpo humilhado, exposto em plena ruína. A morte ignorando qualquer ética, qualquer estética. A morte a escapar ilesa do humano. A apontar a insignificância do corpo. O confronto brutal.

Séculos para recobrar-se de tudo. A mãe, a memória, as palavras e gestos da mãe, pairando sobre a dor, sobre aqueles dias. A falta pungente.
A vida compreendida como algo mais efêmero do que parecia. Mais importante e muito mais desimportante. A vida a ser vivida e morrida.



Silvia Chueire

sábado, 3 de novembro de 2007

















O dono da boca


Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito.
Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.

Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro!

Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho, a Helineide me olhando sem dizer nada.
Interrompi o que fazia :
- O que que é há Helineide ?
- É que estou com um probleminha e achei que a senhora que é tão lida e é arquiteta e tudo, talvez pudesse me ajudar.
- Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade.

Como é que vou dizer a ele ? Pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana, money, massari.

- Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que é que eu faço.
- Fala, Helineide. Diz. E parei com o plissê (depois pensaria no que dizer a ele).

- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas, jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem.
- Sim, e então?
- Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola.
- E agora? perguntei preocupada por ela.
- Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir.
Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.

Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada.
- Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada?
- Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe...
- O que, mulher !?
- Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo, tudo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação.
- Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca...
- Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, promessa e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?

Calei-me pensativa. Meu problema perto do dela era nada. Eu ainda posso apertar mais as finanças enquanto o meu amor não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.

- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.

Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.


Silvia Chueire

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O tempo

Sei que o tempo é um truque que inventamos porque o sol se levanta e se põe . É um truque que inventamos para medir o nosso desespero, a nossa alegria, a distância que nos separa do que queremos , a deterioração inevitável do corpo.

Tu reinventas o tempo para poderes me esperar e voar para mim. Sei que me esperas e queres que te espere. E o faço.

Assim, os dias, as horas, são eu a pensar em ti. E as palavras apenas uma escusa para falar-te, para tocar-te, para abreviar os minutos e a minha necessidade de ti.
O sol a bater-me no rosto pela manhã, as palavras trocadas com as pessoas no caminho, a canção ouvida, de passagem, na rua, o sorriso a um amigo. Todos são o amor a esperar por ti. O meu amor depositado na espera.
A minha vida sou eu a amar-te.


Silvia Chueire

sábado, 6 de outubro de 2007

Manhã de domingo

A manhã nublada do domingo e suas ruas quietas. A casa descansa um descanso que não é meu. Azaléas caladas na varanda, um latido ao longe, a obra na rua parada ao meio. Tudo parece ainda no resto de sono matinal.

Olho detalhadamente as coisas - casa, rua, jardim, árvores, varanda, montanhas ao longe, cão perambulando - à procura do reconforto da visão pacífica de tudo. Sorrio da minha própria ingenuidade. Pacíficas as coisas, inquieta a pessoa. Não me movo, distendendo o entendimento da inevitabilidade dos fatos. Ainda assim sem paz. Ainda assim pergunto sempre.

Queria jazer ali, feito coisa, apenas um objeto impensante a mais na natureza passageira de tudo.
Ou feito gato que vai passando em passos lentos; esguio, todo atenção. Essa atenção esquiva, própria, enigmática, que não pergunta, mas tem propósitos.

Jazer, nem um pensamento a atormentar-me com os porquês.
Reunir-me à buganvília, toda silêncio e espinhos, a usufruir o sol.
E nem uma palavra.

Silvia Chueire

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Afogado

Tinha os olhos afogados no medo como se neles só restassem dúvidas.
E quase, sempre quase, fazia o gesto que o redimiria. Iludiam-no uns segundos de coragem.
Eram incertas as coisas, pensava. Uma vida insensata, cheia de perguntas sem respostas. Cheia de precipícios e arestas imprevisíveis.

Nunca a reconheceu quando ela surgiu na sua vida. Apesar de todos os sinais. Do rio de palavras naturalmente partilhadas. Dos olhos de ambos a sorrirem. Do estremecer da pele quando a via. Do desejo a caminhar-lhe os membros. Da ocultíssima ereção até, que o ameaçava ao olhar para o seu decote.
Não a reconheceu. Nem com a lava de ternura a invadir-lhe o peito, o impulso de se deitar nas coxas dela, ou de enredar-se naquele perfume que parecia conhecer desde sempre. Nem com a vontade de saber seu sexo e a impressão de que já sabia.
Não a reconheceu ainda assim. Nem com os acontecimentos a despertarem-lhe todos os sentidos e todas as palavras. Cada momento a abrir uma fissura na pedra que carregava em si. Ele a falar de si, da sua história, nunca antes comentada sequer com outra pessoa, no gozo da liberdade, esta liberdade rara na qual podia ser quem era. Os olhos dela seguindo atentamente seu relato. A compreensão.
Nada foi suficiente para movê-lo de onde estava. Era um homem descrente. Não acreditava na verdade mesmo que a tivesse nas veias. Um homem vencido pelas incertezas. Dias depois, como sempre fizera, pediu que se fosse. Argumentou com o olhar sem brilho e a voz abafada. Insistiu.

Quando ela dobrou a esquina, pensou que talvez estivesse chorando. Que talvez seu corpo doesse agudamente, que talvez aquela sensação de morte fosse ilusão romântica. Contemplou longamente a mulher que desaparecia, sentindo-se esvair, cair com a chuva miúda na rua. Mas não esboçou gesto ou som. Olhou com aqueles olhos afogados a paisagem em torno.
Nenhuma nitidez .


Silvia Chueire

sábado, 22 de setembro de 2007

Maria Lúcia

Maria Lúcia saltou do táxi e entrou no cinema. Recém remodelado, o Odeón recobrara algo da sua antiga nobreza, deixando de ser a sala decadente que fora nas últimas décadas, lugar preferencial de filmes pornográficos e seus admiradores.

Ajeitou a saia e sentou-se buscando a concentração para assistir o filme. Esforçava-se para manter contida a excitação que tomara conta dela. A taquicardia a ameaçar-lhe a garganta. A adrenalina à solta. Fazia-se necessário domar as substâncias e seus efeitos, pelo bem de certa discrição. Maria Lúcia era toda uma confusão de pensamentos e sensações. Descobria-se outra.
O gosto da vitória, da coragem, da desforra, na boca. O conhecimento do seu poder. A ausência de culpa. O sorriso. O sorriso e a taquicardia. Era uma espécie de prazer, aquilo. Como gozar sem fazer o ruído, às escondidas, pensava.
Contida aquela estranha alegria, aquela vertigem, olhava para a tela na qual um casal de atores discutia, em francês, alguma coisa. Olhava e não acreditava no que fora capaz de fazer.

Matar um homem. O seu homem. Nelson estendido na cama em meio ao sangue. O seu amor, depois o seu ódio, agora sua vingança. Ninguém desconfiaria de uma professora de subúrbio, ninguém sabia do “caso” que eles tiveram. Ele a levava sempre a hotéis baratos. Nunca a apresentara aos amigos.

Todas as noites ardendo de paixão por aquele homem. Tudo que ouvira, as frases de desejo evoluindo para a para a maldade, o desejo assumindo lugar de degradação. Os olhares de desprezo a lhe cortarem por dentro. Depois a crueldade franca estendida nas palavras, o sexo furioso, sem sinal de afeto, a absoluta ausência de ternura. Submetia-se. Sabia que precisava afastar-se dele, mas se submetia. No início o amor a impediu. Como poderia viver sem aquele homem? Mais tarde era um sentimento desconhecido, mistura de amor, ódio e uma sensação de falta de ar quando pensava em separar-se dele. Parecia uma doença a roer-lhe. Por que ainda não rompera? O que era isso? Então gostava de se sentir degradada, de ser maltratada? Dependente, como uma drogada, pensava. Mas tudo continuava acontecendo desde que o conhecera e ele a confundira com uma prostituta apesar das evidências em contrário. E ela deixara acontecer, no início com a emoção de uma adolescente vivendo uma aventura, depois já não sabia porquê.

Agora as coisas mudavam e se sentia forte. Há pouco mais de uma hora saíra daquele hotel, deixando lá Nelson, baleado. O respeito por si mesma retornava. O respeito que só adquirira na vida depois de tomar coragem para sair da casa dos pais. Do pai que abusava dela e da mãe conivente. Nojentos! Agora se sentia inteira. Conhecia a outra que era capaz de ser e gostava dela. Aquela que ouvira o ruído seco de um corpo caindo ao chão sem que aquilo lhe causasse nenhum remorso. A mesma que planejara tudo em detalhes, estremecendo de antecipação. A mulher de quem ninguém suspeitaria, provando a si e a eles quem era. Com o vigor da adrenalina a percorrer-lhe de cima a baixo. Sentia-se bem. Muito bem.

O filme acabou. Antes de sair Maria Lúcia foi ao banheiro, retocou o baton, desabotoou os dois primeiros botões de sua blusa, deixou o blazer também aberto para que a blusa e o decote aparecessem, soltou os cabelos que sabia bonitos, sacudiu-os com a mão e saiu do cinema, os saltos altos pisando firmes o calçamento da praça. Homens a olhavam.

Caminhou com um sorriso divertido nos lábios e entrou num bar um quarteirão mais à frente, o mesmo bar no qual conhecera Nelson. Tão diferente ela estava agora! Não lhe importava a mínima se aquele era um bar freqüentado por prostitutas. Sentou-se num banco alto junto ao balcão, pediu uma caipirinha de limão e olhou em volta. Minutos depois, um sujeito moreno se aproximou dela.

- Olá! Está sozinha?

- Estou sim.

- Posso me sentar aqui?

- Claro! Respondeu, sorrindo.

- Qual o seu preço?

- Ah... Isso? Não se preocupe.

- Como é o seu nome, linda?

- Marta. Disse-lhe com voz velada e olhar sedutor.


Silvia Chueire

terça-feira, 4 de setembro de 2007

lance bressow- nude in red chalk















Marta

A mulher nua sentada sobre um banco de veludo vermelho. Voltada para uma penteadeira antiga escova cuidadosamente os cabelos longos e ondulados. O corpo que se reflete no espelho é quase perfeito à luz imprecisa que invade o quarto. Dedica-se aos cabelos como se deles tudo dependesse.
Um quarto de hotel na Lapa. Hotel de quinta categoria.

O céu ainda vagamente iluminado pelo sol . O céu está la fora, sempre lá fora. O céu nunca é onde estamos, nunca dentro de nós, ela pensa. O que tenho dentro de mim é uma tempestade, vento forte, muita chuva.

O homem deitado a observa, sem brilho no olhar e olha em torno. Os lençóis da cama amarfanhados. O vestido no chão. Segundos depois, com ar de enfado ele pega o jornal que trouxera consigo e principia a lê-lo. Lê o jornal por algum tempo, e pára, a página de esportes acabou. Olha o quarto, onde pisca a luz esverdeada do salão de bilhar em frente, e a mulher a pentear os cabelos .

Crescem nele as perguntas. O que faz ali pela enésima vez nestes ultimos 5 anos, com uma prostituta, quando em casa o espera a família, na casa limpa e bem iluminada, na Tijuca? Sempre a mesma mulher, sempre a sordidez dos mesmos lugares. A vida gastando-se no que agora lhe pareciam horas de vício. Tinha uma lembrança vaga de como tudo começara e a certeza de que era passada a hora de terminar com aquilo. Cortar radicalmente o mal. Dobrar a vida.

Ela se lembrava de tudo nos mínimos detalhes.Era professora primária e estava toda arrumada naquela tarde, pois pela primeira vez decidira-se a ir ao cinema sozinha. Escolhera um filme exibido num cinema no centro da cidade, na Cinelândia. Depois atrevera-se a entrar num bar próximo, que não conhecia, para tomar um suco. A atitude, radical, para uma moça vinda de uma cidade do interior para o Rio de Janeiro , a cidade grande, a fazia sentir-se vitoriosa e segura .
No bar ele a abordou com muita delicadeza, e gentil conversou com ela sobre muitos assuntos que lhe pareceram agradáveis, não falaram sobre as vidas pessoais. Ela não teve vontade de lhe perguntar sobre isto e ele também não fez perguntas. Lembrava-se do encanto a invadir-lhe a cada palavra que ele lhe dizia, do olhar que a seduzia, da oferta para levá-la até sua casa em Irajá e por fim do beijo após lhe confessar que era casado.
Não posso ter compromissos, ele dissera. Sou casado. Mas a beijara na porta de casa. Ela consentira, era só pele, coração e pernas bambas.
Você estava naquele bar, ele disse então, suavemente. É um bar conhecido pela frequência. Sendo uma profissional talvez possamos continuar a nos encontrar algumas vezes, eu lhe pago e fica tudo acertado. Sendo eu casado parece mais correto assim, sem envolvimentos. Depois de uns segundos tentando entender o que ele queria dizer com a palavra “profissional” ela estremecera ao perceber. Mas se conteve ao ver aqueles olhos castanhos a lhe pedirem que assim fosse para poderem continuar juntos, e seu coração a gritar ainda mais e aquela fome de aventura. Disse-lhe que sim, anuindo com a cabeça os olhos pregados na cerâmica bege do piso da entrada do portão.
Durante 5 anos se encontraram em hotéis baratos, ultimamente naquele mesmo hotel. Ela pedira. Nostalgia, talvez? Talvez sim, talvez não. Tudo fora sempre determinado por ele, hora, lugar. Tudo. Ela recusara é claro, o pagamento. Não, não, eu amo você, é por amor. Ele rira. Nunca tinha visto uma coisa dessas, dissera. Desde então ela esperava que ele percebesse a diferença que havia entre ela e uma prostituta. Todos estes anos esperando que ele enfim a reconhecesse. Nos modos, na conversa, na pouca experiência sexual que tinha. Na inocência.

Escova o cabelo lentamente sabendo que ele gostava de a ver assim, calma e bela sentada à sua frente. Espera que enfim ele lhe diga : querida, desculpe-me por tudo, eu amo você. Espera uma esperança débil e teme. Teme o que nem se atreve a pensar, mas pensara. Se pensara! Os anos mudam uma pessoa, tornam-na realista. Já não tinha ilusões. Olhava aquele homem que tinha sido a sua paixão todos estes anos e via o desinteresse dele gravado em cada gesto.

Ele se decidiu:
- Marta, é o fim! Acabamos por aqui! Não posso nem quero mais vir. Não quero continuar a andar com uma puta, mesmo que seja em segredo. Logo eu, um gerente de banco... O que diriam minha família e amigos? Uma puta, um escândalo! E depois nem tem mais graça , nem tesão. Nem sei como aguentei todos estes anos! Seu tom era de desprezo.

Ela vestiu seu tailleur cinza, as meias 7/8 fumée, os sapatos pretos de saltos altos e finos, e levantou-se sem dizer palavra. Contendo, sempre contendo, o susto que tivera e a tensão que aumentava, a raiva.

Ele reconheceu, desagradavel :
- Para uma puta você é de uma elegância impressionante.

Ela recolheu os cabelos num laço azul royal, ainda calada.
- Não vai dizer nada? perguntou admirado.

- Vou sim, Nelson, ouça bem! Chamo-me Maria Lúcia Gomes! Disse isto a você no primeiro dia, mas você cismou de me chamar de Marta e eu não quis contrariá-lo. Sou professora . Jamais fui prostituta! Sempre me admirei por você não querer perceber isto. Sempre esperei que acontecesse. E que esta coisa, à qual me submeti por amar você, se transformasse numa relação normal. Mas não foi assim. Eu queria apenas que você dissesse algo que o redimisse da sua insensibilidade, do seu egoísmo. Infelizmente não aconteceu. E agora estas coisas ditas assim por você, são como tapas. Quem não aguenta mais sou eu! Chega, está ouvindo? Chega!

Ele ironizou :
- Ah, vai dizer também que esperava que eu me separasse para casar com você? Era só o que faltava. Uma puta, ora essa! Professora coisa nenhuma... Puta, isso sim. Ria-se dela.

- Chega, Nelson! Eu já disse que chega! É a última vez! Disse ela, a voz e o corpo trêmulos de indignação.

Ele ria e ria.

Maria Lúcia tirou da bolsa uma pequena pistola e disparou três tiros à queima-roupa que o barulho e música alta do quarto ao lado disfarçaram. Guardou-as na bolsa, pistola e escova. Limpou com um lenço muito branco as possibilidades de ter deixado impressões digitais no quarto. Pegou os livros que trouxera, colocou os óculos escuros e saiu não sem antes olhar para o corpo do homem que amara, as feições de surpresa paralisadas no rosto dele, sangrando sobre a cama.
Não lhe importava mais. Só o que ela queria era o pedido de desculpas dele por ter-se enganado confundindo-a, induzindo-a a se fingir prostituta, à degradação que levou junto o amor que sentia.

Não se esqueceu de avisar na portaria do hotel:
- Ouvi uns barulhos estranhos vindos de algum quarto, pareciam tiros. Acho melhor irem verificar, disse sem sequer tremor na voz.

O rapaz do balcão ao ver aquela senhora, conhecida de vista, elegante e educada, respondeu com presteza:
-Sim, senhora, agora mesmo vou lá ver.

Há meses Maria Lúcia vinha alugando e frequentando um outro quarto no mesmo hotel, num andar mais acima, dizia que precisava solidão para escrever sua tese.

Deixou o lugar aliviada, um sorriso brando no rosto, e chamou um táxi.
- Por favor, leve-me para o Cinema Odeon, ali na Cinelândia.


Silvia Chueire

quinta-feira, 30 de agosto de 2007




















Nenhuma lógica

Nenhuma lógica explica coisa alguma. A vida é uma conjunção de insensatez e temeridade. Uma conjunção involuntária. A sermos generosos poderiamos dizer: semi-voluntária.

Nenhuma lógica explica coisa alguma muito menos alguns raciocínios lineares. Os matemáticos, talvez? Talvez nem isso. Talvez o amor justifique a vida. Viver como ato pleno, quero dizer. Aquele momento raro e pontual em que fomos o melhor de nós mesmos e o fomos para o outro e por nós.

Mas tudo isso são pensamentos esparsos.

Não sejamos ridículos, não dramatizemos, não demos maior valor às coisas do que o que elas têm, poderias dizer-me.

Nada tem valor algum a não ser o que lhe atribuímos. De modo que podes ser cínico, ou descrente, ou sarcástico. O amor não deixará de existir por causa disto. O amor não deixará de existir porque o julgas de pouco valor. Nem o teu amor por mim deixará de existir. O que deixa de existir é a tua possibilidade de vivê-lo integralmente. Eu o vivi. Digo-o sem temores.

Ontem à noite sonhei que visitava uma casa muito branca e quase vazia, projetada contra o céu azul. Algumas árvores sussurravam ao vento ao longo da estrada que ia dar na casa. Outras se distribuíam em torno dela. Dentro, uma estante de muitos livros, uma lareira pequena, a mesa tosca com duas cadeiras e a um canto uma cadeira de balanço. Nela sentava-se um homem muito só, muito triste, mergulhado em remorsos. Pareceu-me estranhamente familiar, a casa, a cena. Sonhei um sonho que não me pertencia, pertencia-te

O que isso tem a ver com a minha digressão sobre o amor? O amor em si mesmo, eu responderia.




Silvia Chueire

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Bilhete

Rio de Janeiro, 07 de fevereiro de 2006.


Caro José Roberto,



Você deve estar estranhando o tratamento formal. Não estranhe, é proposital. Sabendo do seu rigor com as palavras quis dar um tom formal a este bilhete.
Pois isto não é uma carta, muito menos literária, é um bilhete, uma comunicação, uma qualquer coisa. Uma saída, provavelmente. Sim, isso, uma saída. Ainda que esta categoria não exista.
Mas, como você me disse tantas vezes, eu não sou literata, nem literária e nem entendo nada do assunto. Portanto não é carta, nem literatura, estamos acertados.
Vão em anexo três fotografias que eu pediria você só olhasse no momento certo. O momento certo, eu aviso ao longo do bilhete.
Você que gosta de jogos e entende da emoção da manipulação do outro, compreenderá, sei bem. Assim, calma, paciência. Chegaremos lá.

Escrevo-lhe para lhe dizer que cansei.
Cansei de tudo, absolutamente tudo. Não me sobrou nada que não me cansasse. Cansei-me da sua indiferença. Este estado de espírito que se tornou a sua personalidade há anos com a desculpa rasa de ser sua identificação com os europeus, de ser seu lado contido, a máscara que ocultava sua intensa vida interior. Talvez a máscara lhe tenha colado à face, ou, como tenho certeza, sua vida interior seja puro fingimento. O fato é que a cara de tédio, o comportamento impassível em relação às coisas e a mim, não importando o que ocorresse de bom, de agradável, cansou-me.

Para ser muito franca, cansei-me também de mim mesma. Da minha dor com tudo isto, que tentava ocultar de você e de todos, dor que está cravada no meu peito, em cortes fundos. Cansei-me da sensação de ser pequena. Tão pequena e insignificante, feia, desprezível. Do meu olhar pedinte para você, eu me cansei. Era o olhar que pedia a sua atenção, um seu gesto de carinho, uma palavra de afeto, a manifestação de algum interesse. Sabe, José? O amor, mesmo a amizade, transmite-se com os olhos, alimenta-se com os olhos. Cansei-me do seu olhar que me atravessava, frio, quando estávamos em presença de outras pessoas no simulacro que me amava porque você se preocupa tanto com o que pensam os outros. Fingia que me olhava, que me admirava, que me desejava.

Cansei-me de estar bonita e bem vestida só para que você me exibisse aos olhos alheios. De ler o que você gostava, para agradá-lo e o que eu gosto às escondidas, para não ouvir sua crítica em relação às minhas escolhas. Porque a literatura brasileira é pobre, com duas ou três exceções, e Clarice é um expoente desta pobreza e os clássicos é que importavam, você dizia. Dostoievski que me perdoe, cheguei quase a odiá-lo. Cansei-me da minha submissão.

Cansei-me de ter o corpo cobiçado por tantos homens quando você inventava todas as desculpas para não fazermos amor. Ou melhor, para não treparmos. Ou quando o fazíamos, esta coisa rara, ficar sempre com a sensação de ter uma aparência desagradável, porque nunca mais beijos na boca, nunca mais as preliminares. O amor antes do amor, lembra-se? Houve algum dia. Nada da sua boca no meu sexo, lambendo-o com tesão, na minha pele. Nem das mãos agarradas à minha bunda, ou da minha boca a bebê-lo, porque você me impedia.
Sua ereção insuficiente era culpa, clara, de algum gesto meu, dos seios estarem menos firmes do que eram há cinco anos, de eu não ter mais trinta anos.

Cansei de me masturbar. De fingir o orgasmo para proteger o seu amor próprio. Como se aquela coisinha mal ereta, em cinco minutos de movimentos repetidos pudesse dar-me prazer. Seu ronco, minutos depois, eu não suportava mais.
Às vezes penso que você se masturbava usando o meu corpo.Cinco anos, José, é muito tempo. Fingi durante cinco anos. E você se enganou durante o mesmo tempo, porque lhe interessava que fosse assim.Ou porque tinha um desinteresse absoluto de me dar prazer. Ao menos é o que penso, já que não pode ser possível um homem ser tão cego que não perceba a insatisfação da mulher com quem dorme, com quem faz aquilo que você chama sexo. Impossível, estamos casados há seis anos. Ignora quem quer.

Agora aconselharia que você olhasse as fotografias. Sei, pela sua natureza egoísta, que você deve estar lendo este bilhete com ar de enfado. Nada que não fosse assunto seu, exclusivamente seu, o mobilizaria. Mas valho-me da sua curiosidade sobre onde isso vai parar.
São três fotografias tiradas no último mês. Como você verá, em cada uma sou eu a fazer sexo com um homem diferente. Em posições diferentes. Belos homens, com tesão por mim. E eu tive desejo por eles, intensamente. Um deles como você pode ver é o seu amigo Alberto, os outros apaguei os rostos. Envio estas fotografias com a autorização deles. É um imbecil, disse-me Alberto. E se a trata assim, merece mesmo ver isto. Sexo anal, adorei, José. E eles gostaram da minha bunda. Chuparam-me de di ca da men te. Eu fiz o mesmo, com prazer. Por horas. Ah, eu devia ter feito isto antes. Mas eu amava você, esta é a verdade. Pois bem, me cansei.

Ser uma mulher para exibição pública e não ser ninguém na intimidade, no cotidiano, José, tem efeito devastador. Nem um animal vive sem amor. Algum tipo de amor que seja. Algum carinho, consideração. Se não, porque estarmos juntos? Tantas vezes perguntei, tantas você disse que eu estava dramatizando, que era uma chatice.
Ser ninguém para alguém é insuportável. Ser uma coisa, um enfeite na casa. É indizível a sensação que isto provoca numa pessoa. Cansei-me de ser uma não-pessoa, de viver esta tortura. A indiferença é uma tortura. O egoísmo exacerbado faz sofrer o outro, faz parte desta tortura sistemática, deste despersonalizar o outro. Cansei-me de sofrer.

O amor acaba, José. E eu estou recuperando a minha dignidade, meu respeito por mim mesma, meu espaço no mundo.

Espero que você seja infeliz vivendo consigo mesmo. Mas como o conheço, não alimento esperanças. Não creio que você reconheça nada disto, ainda que conte, no fundo, com alguma fagulha de lucidez.

Adeus,

Paula

PS: Por uma questão de eficácia, para que você sinta na pele, enviei cópia deste bilhete, com as devidas fotografias, para seus amigos mais próximos, para a sua família e para o seu chefe.


Silvia Chueire