quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
Outono
Olhei para o céu e para o chão, e de novo para o céu,
Era outono. Havia folhas no chão e um céu limpo, quando me disseste naquela manhã repentina, depois de estares na minha casa há muitos dias e na minha cama por um número igual de dias:
- Não é possível ficar, por tua causa não consigo pintar.
Olhei para a folhas secas a teimar com elas, como se me tivessem dito um absurdo direto da sua secura.
Sou uma mulher, e mulheres não devem derramar lágrimas em vão, principalmente no ambiente em que vivemos. E teimei forte. Calada. Não tinha palavras.
-Por que não voltas? Por que não vais? Por que não ficas? Nasciam da minha garganta atropelando-se, contra a minha vontade. Contive-os.
Suponho que uma boa solução era ter dois amantes. um para o verão, nadaríamos juntos, outro para o inverno quando fizesse muito frio, que me aquecesse. Ou talvez quatro, um para cada estação. Porque neste caso, é certo que não me dirias nada e eu não teimaria com as folhas.
Preciso encontrar uma solução razoável para este teu tipo de statement.
uma indiferença digna, de ascendência real, sem angústias. Mais ou menos assim:
- Olha, hoje mudo de amante e pintarás à vontade.
Mas calei.
Engraçado pensei, olhando o céu, outro homem na primavera, escreve seus livros sem problemas e além disso toca um esplêndido violino enquanto me dispo.
Mas era outono. O céu estava muito azul. Era outono e descuidei-me. O outono da cidade nítida, dos pássaros, não te pertencia. Era só meu.
E repetiste:
- Desculpa-me mas é verdade, por tua causa não consigo produzir nada.
As mentiras têm formas engraçadas, fazem-me lembrar aqueles brinquedos de criança. Tubos com espelhos no fundo e cacos de vidro coloridos que conforme giramos mudam as imagens espelhadas e nos encantam. Não pintas por razões que nada têm a ver comigo, quis dizer. Mas nada disse. Não pintas mesmo que eu cuide de tudo para que estejas bem. Não pintas agora porque não consegues te ultrapassar a ti mesmo, Não tens outro sentimento a não ser teu amor por ti . E ele te impede de amar os outros e de pintar. Não amas e te vais. É esta a tua história. É assim que são as coisas, mas não queres saber. E eu me calo.
O da primavera quando é inverno me aconchega em mantas de lã, sob as quais dormimos nus e fazemos amor. Canta-me canções e eu lhe digo poemas. Como fui me descuidar assim? Trocar estações, enganar-me deste modo?
E finalmente eu disse:
- Já entendi. Tu não pintas e a causa disto sou eu, mesmo que poucas vezes façamos amor, ou conversemos, porque precisas pensar nos teus quadros. Mesmo que tenhas todas as horas vagas sem ser incomodado que precisarias. Acho que tens razão, era mesmo hora de ires.
Tive uma enorme saudade da primavera, e depois das mantas de lã –que chegarão a seu tempo- dos violinos e dos olhos cravados em mim. Das canções e da língua que me conhece tanto.
E uma noção absurdamente clara da estupidez de não ter compreendido antes o que te impedia de pintar.
E abri a porta.
- Adeus.
Silvia Chueire
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
Estava de pé no meio do mundo. No meio da cidade. No meio da casa. No meio da vida. Hirto, sem dizer palavra, estava de pé no meio da balbúrdia do universo.
Tinha 27 anos e estava ali, de pé, os olhos azuis, fixos, atravessando as paredes, voltados para o rumor que escutava, um rumor, um murmúrio de vozes, uma delas elevada sobre todas as outras.
Estava de pé há muitas horas no meio do mundo. Os cabelos louros chegando aos ombros, o tronco nu, as pernas inchadas do tempo que permanecia parado no meio da sala.
À sua volta andavam a mãe, a irmã, o pai, atarantados, a falar com ele palavras que ele ignorava, que se misturavam, insignificantes, ao rumor que ouvia, por trás da outra voz, nítida . Eram palavras de absoluta incompreensão sobre ele, sobre o que estava acontecendo, sobre o seu destino, o seu dever, sua importância nos acontecimentos .
A família chamava-o para fora disto, para coisas pequenas da vida mínima de todos os dias, que não interessavam. Queriam-no para eles. E insistiam, insistiam. Ele não prestava atenção. A vida não era nada daquilo. Era maior que eles. Que ele, que a cidade, que o café da manhã, o jantar, ou ir ao banheiro. Maior do que a sua idade, as diversões, ou o prazer. A vida era grande e podia ser aguda. Um mar e uma gota para um afogamento. Uma faca, um passo além da borda da janela até o corpo se estatelar no chão. Os tiros e os micro intervalos entre os tiros de uma metralhadora, o cravar das balas na carne. Eles não sabiam de nada.
A vida, ele sabia, ali de pé, era um emaranhado de coisas e homens, pensamentos e inutilidades, desorganização e pessoas perdidas, cidades perdidas, nações perdidas. O tempo a pressionar o pensamento dos homens. As mortes, a miséria, as guerras. Isto era a vida! Não as palavras dos livros, ou as especulações dos filósofos. A vida era o sangue correndo sem parar e o mundo, a terra, a desfazer-se. O vontade de todos que o mundo se recuperasse e ninguém fazendo nada. A esperança vazia, porque os homens sempre esperam e a vida os morde cada vez com maior fome, com maior crueldade.
E ele ali, sua responsabilidade olhando-o, à espera de que ele cumprisse a sua parte. Os pensamentos partidos feito trens com suas linhas ferroviárias a se entrecruzarem, umas interrompidas, outras se superpondo. Os pensamentos feito uma geometria doida.
Difícil pensar. A emoção machucava o peito.
Doiam-lhe as costas, os músculos. As pernas e pés, já não se lembrava de senti-los. Tivera sede e a ignorara. A cabeça, sentia-a zonza. Fazia certo calor e a luz fora mantida acesa, anoitecia, percebeu. Ele transpirava.
As pessoas em torno faziam-lhe perguntas que já não respondia há horas. Se estava com fome, se não queria sentar-se, descansar.
Por favor, meu filho, dormir, comer, tomar um banho morno, por favor, meu filho.
Trivialidades. Tivera fome e sono e cansaço nas primeiras horas. Agora vagava, mas não vacilava um segundo sequer. Dali não podia afastar-se.
Sustentava o mundo, que dependia dele, com a tenacidade de quem evita a desgraça.
Súbito pressentiu a entrada na sala de alguém que lá não estava antes. Talvez porque seus pais se afastaram, talvez porque uma campainha tocara. Minutos depois, não soube, nem se interessou em precisar quantos, aproximou-se dele uma mulher, de rosto sério, porém pacífico. Pareceu-lhe ouvir a mãe dizer : esta é a doutora que veio lhe ajudar. Não teve sobressaltos, sabia qual o seu destino, sua tarefa. Uma doutora nada tinha a ver com tudo aquilo. A Voz, o rumor e a Voz, obedecia . O mundo era pesado.
Compreendera como seriam importantes as coisas, ao sair do banheiro dias antes e deparar-se com a visão de um cavalo alado saindo do vaso sanitário. O cavalo belíssimo crescendo à sua frente, as asas se abrindo brancas, lindas. Espetacular. Os pelos do corpo arrepiados, arregalara os olhos o que é isso, meu Deus ? Adrenalina, coração rápido, medo e espanto. Em seguida deu-se conta de que aquilo tinha um significado e na paulatina tentativa de entender, foi se acalmando. Aquela não era uma visão má. Pegasus o cavalo dos deuses? E percebeu o privilégio de ser o homem que podia ver, que sabia o que os outros não sabiam.
Antes de tudo isto sabia que algo estava para acontecer, tinha a sensação de expectativa, ainda que não soubesse o que esperava, tinha atenção. Tantas coisas parecendo estranhas...
Depois as coisas foram evoluindo, os vizinhos a falarem dele. Sempre a falarem mal dele, ele ouvia, cochichos. Ignorantes, invejosos da sua sabedoria... A angústia de saber que as pessoas não entendiam do que ele falava, quando o fazia. E ele às vezes tentava, cada vez menos.
Precisava se manter firme apesar da dor intensa, das pernas que sentia quentes. Bebera um gole de água por insistência da mãe, mas não se movera do meio da sala. Como poderia mover-se do centro do mundo?
A mulher aproximou-se muito calma, chamou-o pelo nome:
- João ? ele imóvel, os olhos semi-cerrados.
- João, preciso conversar com você, ela disse.
- Diga, por que você está no meio do quarto há tantas horas parado? Converse comigo, diga o que há.
- ...
Quem era aquela mulher? E pensou, nada me removerá daqui.
- Que tal nos sentarmos mais confortáveis ? Você está aí há quase 24 horas, sua mãe me disse. Isso é exaustivo. Eu também estou cansada, era melhor conversarmos sentados. Que tal? E deu um leve sorriso.
- ...
- Você precisa ao menos beber água, comer alguma coisa, ir ao banheiro.
O tom calmo da voz, o rosto dela sem aflição, pareciam amigos. Lembrou-se da vontade de urinar que o havia atormentado no início, da sede. Tudo agora era só dor, a agonia pela qual tinha que passar, estar ali de pé, o mundo sobre a sua cabeça, as milhares de vozes do mundo. Não percebiam. Eram incapazes de entender que ele não podia sair dali, que se pudesse correria para o banheiro, ou para o sofá. Mas a sua consciência da importância das coisas e a Voz, que se sobrepunha a todas as outras, o mantinham firme.
Seus pais haviam silenciado, confiando à mulher o diálogo. O rumor longínquo de vozes persistia, falavam dele. Manteve a cabeça ereta, o olhar voltara para a parede. Através da parede olhava para tudo, no seu pensamento, a vida, homens a matarem-se, a morrerem de fome, os gritos de socorro. E tinha certeza absoluta do que devia fazer. Ouvira claramente tantas vezes: depende de você. As notícias na televisão a falarem dele, da fé que tinham nele. Os vizinhos olhando-o, ora desconfiados, ora maldosos, fora ele o escolhido. A confusão das ruas esperando que ele cumprisse seu papel .
- João ? ouviu novamente. Está bem, conversamos aqui mesmo. Diga-me, porque é que você está nesta posição há mais de 24 horas? O que há? Eu não entendo e gostaria de entender.
Nem ela entendia nada! Eles não tinham a menor idéia do que se passava. Pobres de espírito.
Sentiu-se irritado por entre o sofrimento todo, certa exultação por ter sido escolhido, e os pensamentos partindo-se, as vozes. Farei o que deve ser feito.
Gente imbecil !
Olhou para ela, para aqueles mansos olhos castanhos, pronto a dizer um palavrão. Mas sentiu-a solidária. Refreou a raiva e enfim, numa última tentativa, rompeu o silêncio, dizendo em tom alto :
- Será que você não vê que não posso !? Estou de pé no centro do mundo! O equilíbrio das coisas depende de mim, só de mim. Deus me incumbiu de manter o equilíbrio da vida na terra, da vida dos homens, tem me repetido isto há dias. Só há horas percebi claramente que era a voz Dele e que tudo depende apenas de mim ! Se eu me mover daqui tudo vem abaixo, o mundo se desfaz ! Não posso me mover. Não posso. A televisão disse, os vizinhos estão... Cala a boca! Voltou o rosto para o lado de onde ouvira um risinho de deboche. Meus pais não sabem de nada, nem você, pelo jeito.
A dor atravessando-lhe a coluna, a garganta seca, o abdome contraído. Os olhos de novo na parede.
Ela baixou o olhar. Baixou-o na percepção agudíssima do sofrimento daquele homem. Manter o equilíbrio do mundo, a tarefa gigantesca. Durante algum tempo ainda tentou conversar com ele. Precisava convencê-lo a conversar, trazê-lo para perto. Esperava que alguma luz se fizesse dentro dele, mas a que ele via era outra...
Depois ofereceu-lhe água e uns comprimidos. Tinha que tentar, embora soubesse ser mais que mínima a probabilidade de que ele os aceitasse. Nada. Ele não queria comprimidos, água, nada. Não respondeu mais, imóvel.
Saiu dali com a clareza do que estava acontecendo e dirigiu-se aos pais.
- Creio que será preciso interná-lo, ele está sem tomar medicação há muito tempo e a situação tem-se agravado. Se esperarmos mais, tudo se complica do ponto de vista físico também. Chamarei a ambulância, está bem? E deu um telefonema.
Os pais, a irmã, sem saberem o que dizer. Explicou :
- A recusa de tratamento piora tudo, e não creio que ele vá sair dali a não ser num desmaio de exaustão.
Seus motivos são demasiado importantes, ela pensou pesarosa, o mundo depende dele. Voltou à sala.
- João, ficarei aqui com você algum tempo, mesmo que você não queira falar. Estou aqui se você precisar de mim.
Ele se manteve calado. Uma companhia sem exigências, ao menos isso.
Silvia Chueire
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Ia pela calçada da praia revendo a beleza e o mar que lhe acalmavam e sempre lhe traziam uma alegria interna.
O salto fino do sapato ficou preso na calçada de pedras portuguesas. O corpo inclinou-se para frente, preso o pé, e antes do tombo provável ela se apoiou no primeiro braço que ia passando. Surpreso, ainda assim ele a sustentou.
Passado o susto, o constrangimento ainda no ar, pedidos de desculpas. Os de praxe, sem muito exagero. Por uma fração de minuto teve a nítida impressão de que ele se divertia com o seu constrangimento. Como se eu andasse por aí a me agarrar ao braço do primeiro que passa , pensou. Meu Deus, ele é bonito! Pior, vai pensar que é isso.
- Ainda precisa ajuda? Tem certeza que não se machucou? Seu tom era cuidadoso.
Ela pensando, tomara tivesse algum machucadinho, ele me levaria no colo?
- Não, obrigada, respondeu com um sorriso leve, os olhos a olhá-lo de baixo para cima, pois se inclinara um pouco como a conferir o bem-estar do tornozelo.
E olhou-o certa de que o sorriso e o olhar azul eram suas melhores armas. É agora ou nunca! E pôs-se ereta. Ele era um tanto mais alto ainda. Os olhos castanhos claros também sorriam. Parado olhando-a.
-Está bem, então. Até outra vez.
O sorriso nos olhos dele, não sabia se ele brincava ou hesitava.
Nada mais a dizer, estava bem, não caíra e ele queria ir embora. Não podia abordá-lo, que tal tomar um café comigo? . Não tinha jeito para isto. Iria embora também, se possível antes dele. Sorriu um sorriso sem graça, ajeitou a bolsa no ombro, passou a mão na saia, como que a limpar algum cisco e deu o primeiro passo. Seu corpo abruptamente desequilibrou-se, os joelhos cederam. Só viu os braços dele se estendendo.
– Deus é pai! – estava quebrado o salto
Silvia Chueire
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
Morte e sobre-morte
Morte
Os pensamentos atravancando a garganta, a cabeça, o peito, o corpo todo. Devia ser permitido ao ser humano dizer seus pensamentos na desordem em que deságuam em que se enfurecem e crescem mais que nós. Talvez aliviasse a angústia. Talvez.
Mas não, tudo era uma confusão misturada ao esforço extremo para dar conta de algo sobre o qual se sabe apenas que ameaça, amedronta, tem braços que nos apertam o tórax e nos calam a voz. Fingimos e falamos calmamente: está tudo bem.
Menos de vinte e quatro horas decorridas da primeira ida ao médico com a mãe, já sabia: era grave. A imagem do exame era clara, um cérebro infestado, nódulos - de quê?
Gostaria de recusar todo o conhecimento que tinha. Todos os pensamentos que se articulavam rapidamente em imagens, sintomas, probabilidades. O despenhadeiro das probabilidades.
Difícil era conseguir conter o conhecimento, o susto, a vontade de chorar, para exibir um sorriso franco, firme: está tudo bem, a não ser por uma coisinha à toa. Mentirosa!Disse a si mesma, a culpa misturada à pena, das duas. A impotência misturada à dor. A dor aguda de perceber claramente o risco, a vida a tirá-la dela.
Atravessar a cidade como se nada houvesse acontecido, conversando banalidades e pequenas observações: amanhã falamos com o seu médico para começar a investigar isto, talvez seja uma micro calcificação antiga, destas da idade, dizia . Sabia que era esperada dela uma opinião, era a filha mais velha e médica. E respondia às perguntas hesitantes com o jeito calmo de quem não temia. Minimizava riscos, inventava hipóteses. A mãe corria risco de vida e elas conversavam bobagens. O tempo escorrendo pela janela do automóvel. O tempo de redobrado valor. Tudo tão urgente e pararam na padaria a pedido da mãe. Queria poder chorar e agarrar-se a ela como fazia quando criança. Mãe, não vá! Egoísta, pensou, sou uma egoísta.
Depois, a tortura dos irmãos a lhe perguntarem todos os dias a mesma coisa, todos os dias se com certeza o diagnóstico era fatal. A tortura de ter que lhes responder centenas de vezes que sim. Que sim. Que sim! Pelo amor de deus, parem de me fazer esta pergunta, ela fere, a resposta fere! Quis gritar.
Depois, o desenrolar de dias de medo, confirmações, esperanças ruídas, a mãe perplexa, sem fazer perguntas. O desfilar de situações tão conhecidas, o corpo da mãe escapando ao controle, o espanto delas com tudo isso, a sensibilíssima pele de emoções na qual a mãe se transformou. A vida despedindo-se.
Por último a semana de hospitalização, a rápida corrida da morte contra a vida. A morte eficaz. A impotência assumindo ares de rainha.
O silêncio da morte. O abraço apertado da morte. O último abraço. A dor. A dor.
Sobre-morte
Abriram o caixão. A mãe ainda jazia lá. A mãe era aquela espécie de corpo. A mulher era aquele corpo descarnado. A morte tem palavras estranhas para nos falar da vida. Deu dois passos atrás, ainda que se os não víssemos. Mentalmente deu dois passos atrás.
Teve algum dia a ilusão científica ou mitológica, não sabia bem, de que aquele corpo não seria mais a mãe, seria pó, ou algum esqueleto sem personalidade, nenhuma história dizendo coisa alguma pelas cavidades orbitárias, apenas denominações anatômicas.
O que fazer quando os olhos se despregam da nossa cara e colam-se a um corpo deteriorado na incredulidade de que aquele seja o fim, aquela afronta?
Não que desconhecesse o fim. O fato é que a mãe, o corpo da mãe, os restos da mãe, vestiam o mesmo vestido e calçavam os mesmos sapatos. E ainda que se esforçasse por não reconhecê-la, ali estava ela.
O soco na boca do estômago das convicções e das convicções por trás das convicções, a sacudi-la. O soco na boca do estômago. Sua ilusão sacudida ante a natureza das coisas.
E por cima de tudo aquele corpo humilhado, exposto em plena ruína. A morte ignorando qualquer ética, qualquer estética. A morte a escapar ilesa do humano. A apontar a insignificância do corpo. O confronto brutal.
Séculos para recobrar-se de tudo. A mãe, a memória, as palavras e gestos da mãe, pairando sobre a dor, sobre aqueles dias. A falta pungente.
A vida compreendida como algo mais efêmero do que parecia. Mais importante e muito mais desimportante. A vida a ser vivida e morrida.
Silvia Chueire
sábado, 3 de novembro de 2007
O dono da boca
Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito.
Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.
Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro!
Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho, a Helineide me olhando sem dizer nada.
Interrompi o que fazia :
- O que que é há Helineide ?
- É que estou com um probleminha e achei que a senhora que é tão lida e é arquiteta e tudo, talvez pudesse me ajudar.
- Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade.
Como é que vou dizer a ele ? Pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana, money, massari.
- Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que é que eu faço.
- Fala, Helineide. Diz. E parei com o plissê (depois pensaria no que dizer a ele).
- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas, jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem.
- Sim, e então?
- Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola.
- E agora? perguntei preocupada por ela.
- Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir.
Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.
Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada.
- Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada?
- Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe...
- O que, mulher !?
- Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo, tudo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação.
- Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca...
- Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, promessa e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?
Calei-me pensativa. Meu problema perto do dela era nada. Eu ainda posso apertar mais as finanças enquanto o meu amor não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.
- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.
Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.
Silvia Chueire
terça-feira, 16 de outubro de 2007
O tempo
Tu reinventas o tempo para poderes me esperar e voar para mim. Sei que me esperas e queres que te espere. E o faço.
Assim, os dias, as horas, são eu a pensar em ti. E as palavras apenas uma escusa para falar-te, para tocar-te, para abreviar os minutos e a minha necessidade de ti.
O sol a bater-me no rosto pela manhã, as palavras trocadas com as pessoas no caminho, a canção ouvida, de passagem, na rua, o sorriso a um amigo. Todos são o amor a esperar por ti. O meu amor depositado na espera.
A minha vida sou eu a amar-te.
Silvia Chueire
sábado, 6 de outubro de 2007
Manhã de domingo
Olho detalhadamente as coisas - casa, rua, jardim, árvores, varanda, montanhas ao longe, cão perambulando - à procura do reconforto da visão pacífica de tudo. Sorrio da minha própria ingenuidade. Pacíficas as coisas, inquieta a pessoa. Não me movo, distendendo o entendimento da inevitabilidade dos fatos. Ainda assim sem paz. Ainda assim pergunto sempre.
Queria jazer ali, feito coisa, apenas um objeto impensante a mais na natureza passageira de tudo.
Ou feito gato que vai passando em passos lentos; esguio, todo atenção. Essa atenção esquiva, própria, enigmática, que não pergunta, mas tem propósitos.
Jazer, nem um pensamento a atormentar-me com os porquês.
Reunir-me à buganvília, toda silêncio e espinhos, a usufruir o sol.
E nem uma palavra.
Silvia Chueire
terça-feira, 2 de outubro de 2007
Tinha os olhos afogados no medo como se neles só restassem dúvidas.
E quase, sempre quase, fazia o gesto que o redimiria. Iludiam-no uns segundos de coragem.
Eram incertas as coisas, pensava. Uma vida insensata, cheia de perguntas sem respostas. Cheia de precipícios e arestas imprevisíveis.
Nunca a reconheceu quando ela surgiu na sua vida. Apesar de todos os sinais. Do rio de palavras naturalmente partilhadas. Dos olhos de ambos a sorrirem. Do estremecer da pele quando a via. Do desejo a caminhar-lhe os membros. Da ocultíssima ereção até, que o ameaçava ao olhar para o seu decote.
Não a reconheceu. Nem com a lava de ternura a invadir-lhe o peito, o impulso de se deitar nas coxas dela, ou de enredar-se naquele perfume que parecia conhecer desde sempre. Nem com a vontade de saber seu sexo e a impressão de que já sabia.
Não a reconheceu ainda assim. Nem com os acontecimentos a despertarem-lhe todos os sentidos e todas as palavras. Cada momento a abrir uma fissura na pedra que carregava em si. Ele a falar de si, da sua história, nunca antes comentada sequer com outra pessoa, no gozo da liberdade, esta liberdade rara na qual podia ser quem era. Os olhos dela seguindo atentamente seu relato. A compreensão.
Nada foi suficiente para movê-lo de onde estava. Era um homem descrente. Não acreditava na verdade mesmo que a tivesse nas veias. Um homem vencido pelas incertezas. Dias depois, como sempre fizera, pediu que se fosse. Argumentou com o olhar sem brilho e a voz abafada. Insistiu.
Quando ela dobrou a esquina, pensou que talvez estivesse chorando. Que talvez seu corpo doesse agudamente, que talvez aquela sensação de morte fosse ilusão romântica. Contemplou longamente a mulher que desaparecia, sentindo-se esvair, cair com a chuva miúda na rua. Mas não esboçou gesto ou som. Olhou com aqueles olhos afogados a paisagem em torno.
Nenhuma nitidez .
Silvia Chueire
sábado, 22 de setembro de 2007
Maria Lúcia
Ajeitou a saia e sentou-se buscando a concentração para assistir o filme. Esforçava-se para manter contida a excitação que tomara conta dela. A taquicardia a ameaçar-lhe a garganta. A adrenalina à solta. Fazia-se necessário domar as substâncias e seus efeitos, pelo bem de certa discrição. Maria Lúcia era toda uma confusão de pensamentos e sensações. Descobria-se outra.
O gosto da vitória, da coragem, da desforra, na boca. O conhecimento do seu poder. A ausência de culpa. O sorriso. O sorriso e a taquicardia. Era uma espécie de prazer, aquilo. Como gozar sem fazer o ruído, às escondidas, pensava.
Contida aquela estranha alegria, aquela vertigem, olhava para a tela na qual um casal de atores discutia, em francês, alguma coisa. Olhava e não acreditava no que fora capaz de fazer.
Matar um homem. O seu homem. Nelson estendido na cama em meio ao sangue. O seu amor, depois o seu ódio, agora sua vingança. Ninguém desconfiaria de uma professora de subúrbio, ninguém sabia do “caso” que eles tiveram. Ele a levava sempre a hotéis baratos. Nunca a apresentara aos amigos.
Todas as noites ardendo de paixão por aquele homem. Tudo que ouvira, as frases de desejo evoluindo para a para a maldade, o desejo assumindo lugar de degradação. Os olhares de desprezo a lhe cortarem por dentro. Depois a crueldade franca estendida nas palavras, o sexo furioso, sem sinal de afeto, a absoluta ausência de ternura. Submetia-se. Sabia que precisava afastar-se dele, mas se submetia. No início o amor a impediu. Como poderia viver sem aquele homem? Mais tarde era um sentimento desconhecido, mistura de amor, ódio e uma sensação de falta de ar quando pensava em separar-se dele. Parecia uma doença a roer-lhe. Por que ainda não rompera? O que era isso? Então gostava de se sentir degradada, de ser maltratada? Dependente, como uma drogada, pensava. Mas tudo continuava acontecendo desde que o conhecera e ele a confundira com uma prostituta apesar das evidências em contrário. E ela deixara acontecer, no início com a emoção de uma adolescente vivendo uma aventura, depois já não sabia porquê.
Agora as coisas mudavam e se sentia forte. Há pouco mais de uma hora saíra daquele hotel, deixando lá Nelson, baleado. O respeito por si mesma retornava. O respeito que só adquirira na vida depois de tomar coragem para sair da casa dos pais. Do pai que abusava dela e da mãe conivente. Nojentos! Agora se sentia inteira. Conhecia a outra que era capaz de ser e gostava dela. Aquela que ouvira o ruído seco de um corpo caindo ao chão sem que aquilo lhe causasse nenhum remorso. A mesma que planejara tudo em detalhes, estremecendo de antecipação. A mulher de quem ninguém suspeitaria, provando a si e a eles quem era. Com o vigor da adrenalina a percorrer-lhe de cima a baixo. Sentia-se bem. Muito bem.
O filme acabou. Antes de sair Maria Lúcia foi ao banheiro, retocou o baton, desabotoou os dois primeiros botões de sua blusa, deixou o blazer também aberto para que a blusa e o decote aparecessem, soltou os cabelos que sabia bonitos, sacudiu-os com a mão e saiu do cinema, os saltos altos pisando firmes o calçamento da praça. Homens a olhavam.
Caminhou com um sorriso divertido nos lábios e entrou num bar um quarteirão mais à frente, o mesmo bar no qual conhecera Nelson. Tão diferente ela estava agora! Não lhe importava a mínima se aquele era um bar freqüentado por prostitutas. Sentou-se num banco alto junto ao balcão, pediu uma caipirinha de limão e olhou em volta. Minutos depois, um sujeito moreno se aproximou dela.
- Olá! Está sozinha?
- Estou sim.
- Posso me sentar aqui?
- Claro! Respondeu, sorrindo.
- Qual o seu preço?
- Ah... Isso? Não se preocupe.
- Como é o seu nome, linda?
- Marta. Disse-lhe com voz velada e olhar sedutor.
Silvia Chueire
terça-feira, 4 de setembro de 2007
Marta
A mulher nua sentada sobre um banco de veludo vermelho. Voltada para uma penteadeira antiga escova cuidadosamente os cabelos longos e ondulados. O corpo que se reflete no espelho é quase perfeito à luz imprecisa que invade o quarto. Dedica-se aos cabelos como se deles tudo dependesse.
Um quarto de hotel na Lapa. Hotel de quinta categoria.
O céu ainda vagamente iluminado pelo sol . O céu está la fora, sempre lá fora. O céu nunca é onde estamos, nunca dentro de nós, ela pensa. O que tenho dentro de mim é uma tempestade, vento forte, muita chuva.
O homem deitado a observa, sem brilho no olhar e olha em torno. Os lençóis da cama amarfanhados. O vestido no chão. Segundos depois, com ar de enfado ele pega o jornal que trouxera consigo e principia a lê-lo. Lê o jornal por algum tempo, e pára, a página de esportes acabou. Olha o quarto, onde pisca a luz esverdeada do salão de bilhar em frente, e a mulher a pentear os cabelos .
Crescem nele as perguntas. O que faz ali pela enésima vez nestes ultimos 5 anos, com uma prostituta, quando em casa o espera a família, na casa limpa e bem iluminada, na Tijuca? Sempre a mesma mulher, sempre a sordidez dos mesmos lugares. A vida gastando-se no que agora lhe pareciam horas de vício. Tinha uma lembrança vaga de como tudo começara e a certeza de que era passada a hora de terminar com aquilo. Cortar radicalmente o mal. Dobrar a vida.
Ela se lembrava de tudo nos mínimos detalhes.Era professora primária e estava toda arrumada naquela tarde, pois pela primeira vez decidira-se a ir ao cinema sozinha. Escolhera um filme exibido num cinema no centro da cidade, na Cinelândia. Depois atrevera-se a entrar num bar próximo, que não conhecia, para tomar um suco. A atitude, radical, para uma moça vinda de uma cidade do interior para o Rio de Janeiro , a cidade grande, a fazia sentir-se vitoriosa e segura .
No bar ele a abordou com muita delicadeza, e gentil conversou com ela sobre muitos assuntos que lhe pareceram agradáveis, não falaram sobre as vidas pessoais. Ela não teve vontade de lhe perguntar sobre isto e ele também não fez perguntas. Lembrava-se do encanto a invadir-lhe a cada palavra que ele lhe dizia, do olhar que a seduzia, da oferta para levá-la até sua casa em Irajá e por fim do beijo após lhe confessar que era casado.
Não posso ter compromissos, ele dissera. Sou casado. Mas a beijara na porta de casa. Ela consentira, era só pele, coração e pernas bambas.
Você estava naquele bar, ele disse então, suavemente. É um bar conhecido pela frequência. Sendo uma profissional talvez possamos continuar a nos encontrar algumas vezes, eu lhe pago e fica tudo acertado. Sendo eu casado parece mais correto assim, sem envolvimentos. Depois de uns segundos tentando entender o que ele queria dizer com a palavra “profissional” ela estremecera ao perceber. Mas se conteve ao ver aqueles olhos castanhos a lhe pedirem que assim fosse para poderem continuar juntos, e seu coração a gritar ainda mais e aquela fome de aventura. Disse-lhe que sim, anuindo com a cabeça os olhos pregados na cerâmica bege do piso da entrada do portão.
Durante 5 anos se encontraram em hotéis baratos, ultimamente naquele mesmo hotel. Ela pedira. Nostalgia, talvez? Talvez sim, talvez não. Tudo fora sempre determinado por ele, hora, lugar. Tudo. Ela recusara é claro, o pagamento. Não, não, eu amo você, é por amor. Ele rira. Nunca tinha visto uma coisa dessas, dissera. Desde então ela esperava que ele percebesse a diferença que havia entre ela e uma prostituta. Todos estes anos esperando que ele enfim a reconhecesse. Nos modos, na conversa, na pouca experiência sexual que tinha. Na inocência.
Escova o cabelo lentamente sabendo que ele gostava de a ver assim, calma e bela sentada à sua frente. Espera que enfim ele lhe diga : querida, desculpe-me por tudo, eu amo você. Espera uma esperança débil e teme. Teme o que nem se atreve a pensar, mas pensara. Se pensara! Os anos mudam uma pessoa, tornam-na realista. Já não tinha ilusões. Olhava aquele homem que tinha sido a sua paixão todos estes anos e via o desinteresse dele gravado em cada gesto.
Ele se decidiu:
- Marta, é o fim! Acabamos por aqui! Não posso nem quero mais vir. Não quero continuar a andar com uma puta, mesmo que seja em segredo. Logo eu, um gerente de banco... O que diriam minha família e amigos? Uma puta, um escândalo! E depois nem tem mais graça , nem tesão. Nem sei como aguentei todos estes anos! Seu tom era de desprezo.
Ela vestiu seu tailleur cinza, as meias 7/8 fumée, os sapatos pretos de saltos altos e finos, e levantou-se sem dizer palavra. Contendo, sempre contendo, o susto que tivera e a tensão que aumentava, a raiva.
Ele reconheceu, desagradavel :
- Para uma puta você é de uma elegância impressionante.
Ela recolheu os cabelos num laço azul royal, ainda calada.
- Não vai dizer nada? perguntou admirado.
- Vou sim, Nelson, ouça bem! Chamo-me Maria Lúcia Gomes! Disse isto a você no primeiro dia, mas você cismou de me chamar de Marta e eu não quis contrariá-lo. Sou professora . Jamais fui prostituta! Sempre me admirei por você não querer perceber isto. Sempre esperei que acontecesse. E que esta coisa, à qual me submeti por amar você, se transformasse numa relação normal. Mas não foi assim. Eu queria apenas que você dissesse algo que o redimisse da sua insensibilidade, do seu egoísmo. Infelizmente não aconteceu. E agora estas coisas ditas assim por você, são como tapas. Quem não aguenta mais sou eu! Chega, está ouvindo? Chega!
Ele ironizou :
- Ah, vai dizer também que esperava que eu me separasse para casar com você? Era só o que faltava. Uma puta, ora essa! Professora coisa nenhuma... Puta, isso sim. Ria-se dela.
- Chega, Nelson! Eu já disse que chega! É a última vez! Disse ela, a voz e o corpo trêmulos de indignação.
Ele ria e ria.
Maria Lúcia tirou da bolsa uma pequena pistola e disparou três tiros à queima-roupa que o barulho e música alta do quarto ao lado disfarçaram. Guardou-as na bolsa, pistola e escova. Limpou com um lenço muito branco as possibilidades de ter deixado impressões digitais no quarto. Pegou os livros que trouxera, colocou os óculos escuros e saiu não sem antes olhar para o corpo do homem que amara, as feições de surpresa paralisadas no rosto dele, sangrando sobre a cama.
Não lhe importava mais. Só o que ela queria era o pedido de desculpas dele por ter-se enganado confundindo-a, induzindo-a a se fingir prostituta, à degradação que levou junto o amor que sentia.
Não se esqueceu de avisar na portaria do hotel:
- Ouvi uns barulhos estranhos vindos de algum quarto, pareciam tiros. Acho melhor irem verificar, disse sem sequer tremor na voz.
O rapaz do balcão ao ver aquela senhora, conhecida de vista, elegante e educada, respondeu com presteza:
-Sim, senhora, agora mesmo vou lá ver.
Há meses Maria Lúcia vinha alugando e frequentando um outro quarto no mesmo hotel, num andar mais acima, dizia que precisava solidão para escrever sua tese.
Deixou o lugar aliviada, um sorriso brando no rosto, e chamou um táxi.
- Por favor, leve-me para o Cinema Odeon, ali na Cinelândia.
Silvia Chueire
quinta-feira, 30 de agosto de 2007
Nenhuma lógica
Nenhuma lógica explica coisa alguma. A vida é uma conjunção de insensatez e temeridade. Uma conjunção involuntária. A sermos generosos poderiamos dizer: semi-voluntária.
Nenhuma lógica explica coisa alguma muito menos alguns raciocínios lineares. Os matemáticos, talvez? Talvez nem isso. Talvez o amor justifique a vida. Viver como ato pleno, quero dizer. Aquele momento raro e pontual em que fomos o melhor de nós mesmos e o fomos para o outro e por nós.
Mas tudo isso são pensamentos esparsos.
Não sejamos ridículos, não dramatizemos, não demos maior valor às coisas do que o que elas têm, poderias dizer-me.
Nada tem valor algum a não ser o que lhe atribuímos. De modo que podes ser cínico, ou descrente, ou sarcástico. O amor não deixará de existir por causa disto. O amor não deixará de existir porque o julgas de pouco valor. Nem o teu amor por mim deixará de existir. O que deixa de existir é a tua possibilidade de vivê-lo integralmente. Eu o vivi. Digo-o sem temores.
Ontem à noite sonhei que visitava uma casa muito branca e quase vazia, projetada contra o céu azul. Algumas árvores sussurravam ao vento ao longo da estrada que ia dar na casa. Outras se distribuíam em torno dela. Dentro, uma estante de muitos livros, uma lareira pequena, a mesa tosca com duas cadeiras e a um canto uma cadeira de balanço. Nela sentava-se um homem muito só, muito triste, mergulhado em remorsos. Pareceu-me estranhamente familiar, a casa, a cena. Sonhei um sonho que não me pertencia, pertencia-te
O que isso tem a ver com a minha digressão sobre o amor? O amor em si mesmo, eu responderia.
Silvia Chueire
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Bilhete
Caro José Roberto,
Você deve estar estranhando o tratamento formal. Não estranhe, é proposital. Sabendo do seu rigor com as palavras quis dar um tom formal a este bilhete.
Pois isto não é uma carta, muito menos literária, é um bilhete, uma comunicação, uma qualquer coisa. Uma saída, provavelmente. Sim, isso, uma saída. Ainda que esta categoria não exista.
Mas, como você me disse tantas vezes, eu não sou literata, nem literária e nem entendo nada do assunto. Portanto não é carta, nem literatura, estamos acertados.
Vão em anexo três fotografias que eu pediria você só olhasse no momento certo. O momento certo, eu aviso ao longo do bilhete.
Você que gosta de jogos e entende da emoção da manipulação do outro, compreenderá, sei bem. Assim, calma, paciência. Chegaremos lá.
Escrevo-lhe para lhe dizer que cansei.
Cansei de tudo, absolutamente tudo. Não me sobrou nada que não me cansasse. Cansei-me da sua indiferença. Este estado de espírito que se tornou a sua personalidade há anos com a desculpa rasa de ser sua identificação com os europeus, de ser seu lado contido, a máscara que ocultava sua intensa vida interior. Talvez a máscara lhe tenha colado à face, ou, como tenho certeza, sua vida interior seja puro fingimento. O fato é que a cara de tédio, o comportamento impassível em relação às coisas e a mim, não importando o que ocorresse de bom, de agradável, cansou-me.
Para ser muito franca, cansei-me também de mim mesma. Da minha dor com tudo isto, que tentava ocultar de você e de todos, dor que está cravada no meu peito, em cortes fundos. Cansei-me da sensação de ser pequena. Tão pequena e insignificante, feia, desprezível. Do meu olhar pedinte para você, eu me cansei. Era o olhar que pedia a sua atenção, um seu gesto de carinho, uma palavra de afeto, a manifestação de algum interesse. Sabe, José? O amor, mesmo a amizade, transmite-se com os olhos, alimenta-se com os olhos. Cansei-me do seu olhar que me atravessava, frio, quando estávamos em presença de outras pessoas no simulacro que me amava porque você se preocupa tanto com o que pensam os outros. Fingia que me olhava, que me admirava, que me desejava.
Cansei-me de estar bonita e bem vestida só para que você me exibisse aos olhos alheios. De ler o que você gostava, para agradá-lo e o que eu gosto às escondidas, para não ouvir sua crítica em relação às minhas escolhas. Porque a literatura brasileira é pobre, com duas ou três exceções, e Clarice é um expoente desta pobreza e os clássicos é que importavam, você dizia. Dostoievski que me perdoe, cheguei quase a odiá-lo. Cansei-me da minha submissão.
Cansei-me de ter o corpo cobiçado por tantos homens quando você inventava todas as desculpas para não fazermos amor. Ou melhor, para não treparmos. Ou quando o fazíamos, esta coisa rara, ficar sempre com a sensação de ter uma aparência desagradável, porque nunca mais beijos na boca, nunca mais as preliminares. O amor antes do amor, lembra-se? Houve algum dia. Nada da sua boca no meu sexo, lambendo-o com tesão, na minha pele. Nem das mãos agarradas à minha bunda, ou da minha boca a bebê-lo, porque você me impedia.
Sua ereção insuficiente era culpa, clara, de algum gesto meu, dos seios estarem menos firmes do que eram há cinco anos, de eu não ter mais trinta anos.
Cansei de me masturbar. De fingir o orgasmo para proteger o seu amor próprio. Como se aquela coisinha mal ereta, em cinco minutos de movimentos repetidos pudesse dar-me prazer. Seu ronco, minutos depois, eu não suportava mais.
Às vezes penso que você se masturbava usando o meu corpo.Cinco anos, José, é muito tempo. Fingi durante cinco anos. E você se enganou durante o mesmo tempo, porque lhe interessava que fosse assim.Ou porque tinha um desinteresse absoluto de me dar prazer. Ao menos é o que penso, já que não pode ser possível um homem ser tão cego que não perceba a insatisfação da mulher com quem dorme, com quem faz aquilo que você chama sexo. Impossível, estamos casados há seis anos. Ignora quem quer.
Agora aconselharia que você olhasse as fotografias. Sei, pela sua natureza egoísta, que você deve estar lendo este bilhete com ar de enfado. Nada que não fosse assunto seu, exclusivamente seu, o mobilizaria. Mas valho-me da sua curiosidade sobre onde isso vai parar.
São três fotografias tiradas no último mês. Como você verá, em cada uma sou eu a fazer sexo com um homem diferente. Em posições diferentes. Belos homens, com tesão por mim. E eu tive desejo por eles, intensamente. Um deles como você pode ver é o seu amigo Alberto, os outros apaguei os rostos. Envio estas fotografias com a autorização deles. É um imbecil, disse-me Alberto. E se a trata assim, merece mesmo ver isto. Sexo anal, adorei, José. E eles gostaram da minha bunda. Chuparam-me de di ca da men te. Eu fiz o mesmo, com prazer. Por horas. Ah, eu devia ter feito isto antes. Mas eu amava você, esta é a verdade. Pois bem, me cansei.
Ser uma mulher para exibição pública e não ser ninguém na intimidade, no cotidiano, José, tem efeito devastador. Nem um animal vive sem amor. Algum tipo de amor que seja. Algum carinho, consideração. Se não, porque estarmos juntos? Tantas vezes perguntei, tantas você disse que eu estava dramatizando, que era uma chatice.
Ser ninguém para alguém é insuportável. Ser uma coisa, um enfeite na casa. É indizível a sensação que isto provoca numa pessoa. Cansei-me de ser uma não-pessoa, de viver esta tortura. A indiferença é uma tortura. O egoísmo exacerbado faz sofrer o outro, faz parte desta tortura sistemática, deste despersonalizar o outro. Cansei-me de sofrer.
O amor acaba, José. E eu estou recuperando a minha dignidade, meu respeito por mim mesma, meu espaço no mundo.
Espero que você seja infeliz vivendo consigo mesmo. Mas como o conheço, não alimento esperanças. Não creio que você reconheça nada disto, ainda que conte, no fundo, com alguma fagulha de lucidez.
Adeus,
Paula
PS: Por uma questão de eficácia, para que você sinta na pele, enviei cópia deste bilhete, com as devidas fotografias, para seus amigos mais próximos, para a sua família e para o seu chefe.
Silvia Chueire
domingo, 29 de julho de 2007
Vem
Vou-me juntar a ti nesta tarde nascente que queima entre as casuarinas. Ouves o que elas murmuram olhando o mar? Palavras levíssimas a cantar um chamado.
Que é nosso, que não cala. A tarde a encher-se de formas e sons e corpos.
Resgata-me o corpo, todas as formas e o que há dentro delas. Resgatando-as poderei oferecê-las a ti.
Não há pranto a encobrir abismos - talvez um dia houvesse – mas há um oceano a navegar. Uma ausência de medos e um longínquo cantar de sereias. Tu és a voz, a palavra, o corpo, pelos quais percorrerei abismos sem receio, com o prazer estremecido do desejo.
Tu és o meu delírio mais agudo, porque real. O sentido estabelecido das coisas. Como se repentinamente elas tivessem tomado seus lugares no aleatório do mundo. O sentido, o sentimento, o olhar a abandonar o corpo, onde tudo o mais são inânias e o que prevalece é o desfalecimento da entrega. As vozes vulcânicas que nos tomam, que me tomam.
Toma-me. Estaremos construindo um império de afetos e desejo a sobreviver terremotos. Porque não tememos e não somos cegos. Já sabemos bastante de cegueiras e precipícios. Piso passos cuidadosos contigo. Desabridos e cuidadosos por ti. Não esgotarei teus vícios, eles são tu. Tudo será o nosso vôo.
Nesse rio que nos percorre vive uma escrita ancestral, uma palavra única, saída de algum lugar, simultaneamente em nós e fora de nós .
Vem, escreve comigo todas as palavras, os gritos, os segredos que só nós sabemos. As mãos e a boca saciando a fome que não finda. Tudo é domarmos o destino, o bridão em nossas mãos, galope pleno. Qualquer profundidade, a construiremos os dois, com a vida subindo-nos à garganta.
Só colado ao teu, meu corpo se sabe corpo. Por isso para que nada se perca, para que não nos percamos, vem.
Vem...
Silvia Chueire
domingo, 22 de julho de 2007
Sobre desaparecer
Quando ele se foi pensei que não conseguiria ser eu mesma novamente. Pensei que entristeceria até desaparecer . Eu me tornando transparente até que ninguém desse por conta . Nenhum eu. Nada.
A dor física da falta, as lágrimas, a angústia amarrando-me as palavras. Tudo me matando mais um pouco. Deixar de existir não tinha muita importância face ao fato de que ele se fora. Sentia-me uma folha que cai.
É raro o amor . E assim eu o vivo, raridade plena dentro de uma floresta, a densidade da mata úmida a me envolver . Eu inteira no amor . O mundo de palavras, o corpo , a pele a oferecer-se, o sorriso que me cresce da alma para o dia.
Há pessoas que se apaixonam a cada esquina, a cada carta, a cada corpo. Pensam que se apaixonam. Enganam-se.
O tempo ignora todas as criaturas .
Sentir o corpo todo dolorido a carregar um peso insuportável. Silenciar e saber o silêncio a subir-me pelas pernas acima e me envolver o peito, os braços, imobilizar-me. Deitada pensar no que fazer a seguir e não mover um músculo. A tudo isso o tempo ignora. Atravessa-nos e nos faz atravessá-lo impiedosamente. Um pouco como ele fez, no mercy. Nenhum sinal de afeição. O tempo mascando cada um dos nossos dias .
Uma solidão antártica. Frio, vento, dentro e fora. Silêncio.
O amor é um estranho a irromper-nos na vida quando não esperamos, um desconhecido cujo destino não sabemos . Não vive só de palavras, o amor. Ainda que elas reinem nele. Não vive de dúvidas, nem de braços pendidos, ou mãos ameaçadoramente no nosso pescoço. Não sobrevive na exigência que o outro exista apenas para preencher-lhe necessidades. O amor são gestos elevados. Braços a protegerem-nos, mãos a nos acariciarem demoradamente. Boca a subir-nos pelo corpo, a falar-nos ao ouvido.
Deitei-me tantas vezes no sofá a ouvir a música que gostamos, o cão a olhar-me na sua alta preocupação canina. E viajei muitas viagens sobre o que poderia ter sido. Mas o amor também não vive de probabilidades, de como seria se os gestos fossem outros. O amor não sobrevive na impossibilidade do amor. Nem na imobilidade.
O amor voa mundos, adeja-nos a face. E nos leva com ele. Tem asas que nos acolhem. Não teme, não recua. Escala o mundo. Anuncia que chegou, sem pudor.
O amor quer fazer feliz . Quer dar e receber. Não hesita. Não quer saber de discussões filosóficas sobre que é o amor. Quer ser. Livremente.
Numa tarde qualquer, dessas que acontecem poucas vezes, entra-se numa livraria, e lá está o amor. A olhar-nos com seus olhos castanhos, um pequeno sorriso, e algumas palavras carregadas de suavidade. Nós lhe entregamos um sorriso em retribuição, ainda sem saber exatamente o que significa. Mas já com o coração ofertado, batendo demasiado rápido para uma situação aparentemente insignificante. O corpo sabe sempre antes.
Os dias campearam comigo o cerrado, os pastos, as montanhas. Cavalos a me carregarem pelo escuro. A me levarem penetrada pela cegueira, pela dor. Fui até onde não podia mais ir. Fui até onde nunca pensei que fosse.
Um destes dias percebi que começava a ter consistência e vontade. A falta roçando-me eventualmente. Eu a recuperar o meu corpo, o sorriso sem medo, a pessoa inteira que sempre fui.
Silvia Chueire
terça-feira, 10 de julho de 2007
inverno e luvas
andamos pelo mundo sem luvas. vem o inverno e faz frio.
nosso corpo estremece, as mãos enregelam-se e um par de luvas é um sonho.
é possível que as calcemos e não percebamos que estão apertadas ou demasiado grandes. enganamo-nos com as mãos ou com as luvas, mas é inverno e faz frio, como recusá-las?
o amor pode ser um par de luvas?
silvia chueire
sábado, 30 de junho de 2007
Choveu ontem, os carros passavam rápidos, água espanando as pessoas que esperavam no ponto de ônibus. Mais tarde, ao olhar a noite no deserto da rua, vi tua face refletida nas poças junto à calçada.
Não há mistério no meu rosto ao espreitar o céu, acabado de lavar, negro, as estrelas largadas no aleatório.
Não há mistério no meu rosto, não há mistério no teu.
Há uma multidão e nem uma pessoa. São faces passageiras, perdidas. Até que alguma toque a solidão da outra.
Desvendei teu segredo. Soube das tuas mãos presas no calabouço do medo. O corpo rendido à própria fraqueza, acuado pelos cães da angústia. O amor a desafiar tua vida segura pela própria fragilidade, literária.
Desvendei teu segredo, o outro lado, a outra face, o outro homem, a montanha de contradições, o delírio noturno e assombrado. O pranto oculto. O fantasma a perambular, ora hesitante ora agudo pelo labirinto das salas vazias, das mãos femininas, das casas alheias. As palavras a ocultarem tua verdadeira face.
Desvendei teu segredo e secaria tuas lágrimas, fosse isso possível. Eu o faria suavemente, sem mãos, sem palavras, apenas um olhar, próximo, continente.
Desvendei teu segredo e não podes ver-me porque estás cego e eu ardo nos dias e noites. E porque ardo não podes me ver, estás cego e frio.
Ainda ontem tive a justa impressão de que tropeçamos um no outro. Tive a impressão de quase poder tocar-te, mas tocar-te só será possível se não estiveres cego e não ensudecermos nesta distância atlântica.
Saberias que tenho um corpo e palavras e silêncios e um amor liberto. Talvez desvendasses os meus segredos. Talvez.
Silvia Chueire
terça-feira, 26 de junho de 2007
A espera
Havia apenas o mar nos olhos, uma vaga aflição e a espera amorosamente tecida nas canções, quando a lâmina tirou-lhe a voz da garganta e o oceano do peito.
De só golpe decepou-lhe a realidade e o sonho.
Todas as justificativas para a dor são injustificadas quando o amor é óbvio e olha com olhos de esperança.
Recapitulados os dias perfeitos, impecáveis, indescritíveis dias de fascínio, nada mudou. como se um furacão de acontecimentos não a tivesse surpreendido.
"Entre as quatro paredes do meu peito, só eu sei. Só eu sei o que espero e o que desespero": foi a única pista rara vez sussurrada a alguém.
No mais, permanece sentada à mesma janela de sempre. Diz coisas incompreensíveis vez em quando. Lê um livro, ouve música, olha em torno como se acordasse do sono, entoa alguma canção qualquer, vai e volta, sorri, e diz às pessoas coisas prováveis.
Mas permanece lá, nas noites inquietas, a conversar com ele que já não está .A espera, o desespero, raramente visíveis.
Na sala, no quarto , no corpo, em todo lado os sinais da vida desfeita, que só ela sabe.
Silvia Chueire
sexta-feira, 22 de junho de 2007
De medo
Era um dia de medo sob as nuvens, um dia de música ignorada, o medo nascendo feito jato d'água, do peito espalhando-se pelo corpo, a tremer tantos terremotos, como se a terra fosse revirar-se, a náusea a subir e descer.
Era um dia de medo e nestes dias é que renunciamos viver. Assim foi.
Ela o observava sem calar completamente, nunca fora capaz do silêncio de pedra. Observava, cada vértebra estremecida, a pedir internamente: não, assim não. Cada pensamento voltado para o acontecimento: a vida estancada, parada à margem árida do que estava ali, do que estava por vir.
Mas nossas mãos nunca podem remover o medo alheio, por mais que prometam o paraíso. Cada um procura o inferno que bem entende.
Eram dias de tenebroso terror para os quais ela olhava sem acreditar que poderiam ser. Dias de inundações, de ondas desgovernadas, de vozes ásperas chocando-se contra as paredes, contra a sua face incrédula.
Também ela, por minutos, temeu. Temeu o esquecimento de que eram felizes. Tão mais felizes do que podem ser as pessoas no nosso tempo. Sabia que a felicidade tem tanto peso quanto a morte, ambas não se deve esquecer.
Eram dias com o terror colado. Desaguaram em milhares de palavras, numa corrente líquida de palavras desesperadas, de pensamentos a procurar um nexo, qualquer nexo. Mas qualquer nexo corria à solta das coisas, chorava-se a lágrima pura da dor.
Era ela entre as paredes, a tecer as razões de tudo. Era ele acuado. Era ela, Penélope caricatural, a repetir perguntas e respostas, tentando entender a turbulência. Campos e campos de dor. Era ele a fugir.
Não se toma o medo alheio nas mãos e se o desfaz com gestos amorosos. O medo alheio é uma intrincada floresta de dúvidas que não nos pertencem, de renúncias que não são nossas. Nunca renunciou, nunca cedeu ao medo. Mas a nossa coragem não é a coragem do outro.
Era uma casa tristemente quieta de maio. A sua casa. Tapou o seu rosto com a máscara do sorriso, calou sua voz entre as notas de uma qualquer música, e foi vivendo os pedaços da mulher que era, até que os recompusesse um dia. Até que pudesse renascer.
Hoje pensa: um dia a felicidade há de ser uma coisa natural.
Silvia Chueire